blog caliente.

30.11.06

Adiamentos

O Machado, que tem a minha idade, sendo, portanto, um gajo novo para morrer - embora velho para médio de ataque duma equipa da segunda liga -, sente-se melhor. Ele diz que se sente melhor. Que está melhor. Disse-me isto hoje, de manhã. "Olhe, estou melhor!".

Um amigo dele, que é meu amigo também, apareceu-me aqui em casa, já de noite, a contar-me coisas dele, aqueles detalhes geométricos a que se entrega e a que já me habituou e, pelo meio, disse-me o que achava do Machado. Vira-o ontem e parecera-lhe melhor. Além de que lhe dissera, ele próprio, o Machado, que estava melhor. E que, portanto, para todos os efeitos relevantes, melhor estava o Machado.
O mesmo me confidenciara, de manhã, um outro amigo que o levou ao hospital: "olhe que ele arribou...".
Falou-me, mesmo, do Sporting - Benfica, o Machado. Benfiquista a abusar da sua (pouca e injusta) sorte.

Isto tudo para dizer que me parece que o Machado não está nada melhor. Mas que deve estar, de facto, apesar de tudo, porque assim o afirma ele e, num coro pequeno mas afinado, o garantem os amigos dele.

Como também estou a ficar amigo dele, sinas de besugo, pensando bem, também me parece que tem os olhos mais brilhantes. Lembro-me que cintilavam mais, de facto. E creio que engordou, talvez, um quilo. Em quinze dias.
Está mesmo melhor. Um bocadinho melhor.
Vou dizer-lhe isso eu, meio de esguelha mas a olhá-lo fundo, amanhã de manhã. Quando for fazer a ronda dos espelhos.

Parcialidades

Isto passou-se há muitos anos.
Carlos, que cismava muito, cismou matar-se. Não comunicou a ninguém a cisma, muito menos a explicou.

Sabe-se que foi encontrado em casa, morto, dois dias depois.
Estava sentado, hirto, cristalizado na poltrona ortorrômbica que escolhera para se cristalizar.

Tinha-se puncionado, uma veia em cada antebraço. Na do antebraço esquerdo, tinha posto a correr soro com midazolam. Na do antebraço esquerdo, outro soro, com vecurónio.
Tencionava, pois, anestesiar-se no acto de morrer. Ou assim pareceu aos peritos de intenções da brigada fiscalizadora dos que faltam.

Quando o encontraram, porque lhe sentiram a falta dois dias depois de ter faltado, sobretudo porque faltara a uma urgência, e a urgência é uma espécie de missa sem fiéis - por isso mesmo atentos a quem falta -, estava rígido e com uma carranca de dor na face póstuma de gelo roxo.
O soro com midazolam tinha deixado de correr, coisa de vasos entupidos, estava lá quase todo, dentro do frasco.
O soro com vecurónio entrara todo, sem parar, na veia boa.

28.11.06

Há mais de três anos que é assim

Se eu votasse nos melhores blogues e bloggers de 2006 sucederia, provavelmente, o mesmo que me acontece com a atribuição dos Óscares. O melhor filme nunca é o meu melhor filme. O melhor actor nunca é o meu melhor actor (e o meu melhor actor, às vezes, não foi nomeado sequer para o supporting role).

Sabemos todos que há cerca de meia dúzia de blogues mais lidos que estão forçosamente presentes neste tipo de concursos. Seja porque são famosos, seja porque são bons (pertencendo aos segundos todo o mérito), o facto é que definem o mainstream bloguístico e determinam, portanto, o resultado de qualquer votação deste género. Sem surpresas e, claro, sem viço (a eleição, claro).

Gostei, contudo, de saber que há quem aprecie o que escrevemos. Obrigada, pois, aos bloggers que votaram em nós, em particular ao João Tunes e ao Luis Novais Tito, ambos estimados compagnons de route que sempre vigio, espreito e gosto. Como sempre faço, desejando que, desta vez, os meus melhores blogues sejam os vencedores.

Tendências da estação

Estranho é ver, no technorati, os links do nosso defunto endereço blogamemucho.com(*) e verificar que, depois do fatídico dia em que o perdemos, apareceu mais de uma dezena de blogues a incluí-lo na lista de links. Provavelmente, um indício importante de que há quem encare a linkagem do template como adereço de decoração.

(*) O falecido, o http://blogamemucho.blogspot.com, é agora o refúgio de um Great Deal. A seguir com atenção.

Esguichos de besugo

A Geração Rasca promoveu uma votação para eleger, do subjectivíssimo ponto de vista dos votantes, os melhores blogues e blogueres de 2006.
Chegaram-me coisas pelo Technorati - que é onde se carrega para vermos se alguém falou em nós, desancando-nos, ou assim - , algumas coisas, e outras penetraram-me pelos blogues que visito habitualmente.
Chegaram-me poucas. Mas boas. Começo por dizer isto, que é quase tudo.

Bom, as categorias que eles propõem são estas:

Melhor Blog Individual Feminino
Melhor Blog Individual Masculino
Melhor Blog Colectivo
Melhor Blog Temático
Melhor Blog
Melhor Blogger

Nós já recebemos algumas nomeações. De amigos. Nada me admira que o excelente Luís Tito (que nos acha piada há muito tempo), o fogoso João Tunes (que também, quero crer nisso), os insidiosos Revisionistas (que têm bom gosto, acima de tudo), o excelente tipo do Nietzsche (isto do Nietzsche foi só para me chatear, porque ele sabe que eu prefiro dezoito Breuers a um escafóide do complicado filósofo complicadote que se alimentava de água morna) e a talentosa Luna tenham sido simpáticos connosco.
Foram muito benevolentes e gentis.

Eu não consigo. Ser gentil e benevolente, consigo. Eu não consigo é escolher assim. A escolha, para mim, faz-se apenas quando é necessária. Fora da necessidade, a escolha é um requinte da disposição, que pode ser de bondade ou malvadez, pode até ser um mero exercício de bonomia desatenta, mas será sempre um acto de vontade - isto, se o for - ocasional.

Não sinto necessidade de votar. Não é por desrespeito, a ideia é boa e há-de ter sido bondosa. Mas não consigo. Melhor: não sei. Eu sei lá se amanhã vou pensar, como hoje quase que pensei, que o Dragoscópio é o melhor? Eu não sei. Às vezes gosto mais do Boticário, ou do Tugir, ou do Origem das Espécies, ou do Blasfémias, ou dos Bichos Carpinteiros, ou do Água Lisa, ou do Médico Explica Coiso aos Coisos. Ou doutros.

Reparem: este blogue é para os meus filhos. Quando, um dia, precisarem de indagar "onde caralho é que o nosso pai perdeu o norte?", este é um dos lugares que virão ver. E eu não posso ensinar-lhes que a escolha é uma premência, quando não a é. Tenho de ensinar-lhes que se escolhe sempre, escolhe-se quase sempre, mas só quando é preciso que tenha de se escolher e que a escolha é, por inerência necessária, premente.

Não é, para mim, o caso.

Fiquem-se os senhores, todos, com a lista que temos ali à direita. Faltam lá alguns, mas para lá irão logo que se possa. Considerem-se todos modestamente premiados: os que lá estão e aqueles que, não estando, vamos lendo. Considerem-se escolhidos, melhor dizendo. Esguichados.

Muito obrigado. A todos.

27.11.06

Sun Tzu Art of War

João César das Neves continua imparável a anunciar verdades corajosas. Veja-se, por exemplo, a singular noção de paz que preconiza:

Quando os talibãs tomaram o poder em 1996 trouxeram paz ao martirizado Afeganistão, que vivia em sangrento tumulto desde 1973. Os disparates desse regime foram muitos, mas certamente preferíveis à confusão anterior e seguinte.

Mais adiante, arrisca:

Será que a democracia é só para alguns? Será que em certos casos a ditadura é preferível? Não sei dizer.

O que é pena. A democracia para uns, a ditadura para outros. Interessante teoria, lamentavelmente inconclusiva. Mas, note-se, há uma razão para João César das Neves não ter a resposta. Caramba, um homem não pode ter respostas para tudo. Como ele próprio acrescenta,

Ninguém sabe.

Ainda, acrescento eu. Aposto que o impágavel JCN vai pensar melhor nisso e um dia desses apresenta-nos o seu "guia prático de países democratizáveis sem grandes azelhices".

Pequena estória de mais três pontos

Ir jogar à Nabale é um exercício difícil.
O campo dos gajos é um nabal. As bancadas estão enxovalhadas. O patrocínio do Casino da Figueira lembra Judas, como todas as figueiras. O coro das velhas, oleoso, faz lembrar o coral da Choupana, aquela esterqueira de gaiteiras homicidas e quase contidas.
E ver um banco onde preside um azeiteiro de chapéu, quase imitando aquele outro azeiteiro do Porto, um velho bacoco que anda na noite a ver se se amanhece, e isto sempre sendo noite, ao lado dum treinador que parece um contínuo da escola C+S de Quiaios, é fodido.
Já está.
Estava a ver que não. Mas depois tiraram o Carlos Martins e, em saindo esse animal, nem precisa de entrar ninguém: melhora tudo.

26.11.06

Métodos de catalogação

Nos comentários aos posts, MEM designa os anónimos dos comentários de forma inversa à que se distinguem os comboios numa estação: pela hora de chegada. Excelente.

Um blogue, o que é?

Um sacrário. Uma desdita.
Isto.

Má técnica


Vem aí outro Natal e deseja-se que seja bom.
Natal é todos os dias. Se desfocarmos ainda mais pode ter sido hoje.

Adágio

De vez em quando dão -me coisas. Não gosto dessas gratidões de coisas.
Darem-me coisas coisifica-me tudo.

Benefícios fiscais

Ele estava com muita falta de ar e o génio disse-lhe que lesse o livro que lhe levava, que era bom e muitíssimo razoável, no sentido de haver ali, no livro, tantas razões que quase que parecia escorrer, do livro - as razões todas somadas -, a razão toda.
Mas ele preferiu gastar algum do pouco ar que ainda tinha a dizer ao génio para enfiar o livro no cu, no do génio, do que poupá-lo para si, ao ar poupado.

Semifusas

Desprezo a razão pura.
A pureza é uma qualidade que, quando aplicada a produto de mioleira, cheira demasiado a fritos.

25.11.06

Apostar no escuro

Um génio encontrou outro génio e perguntou-lhe:
- "Olha lá, tu que és um génio, diz-me: quando concedermos os três desejos da praxe, depois disso, para que servimos? Que vem a seguir?".
- "Diz-me tu, que és um génio" - sumiu-se o outro, já a enfiar-se na lamparina.
- "Isso dá para esfregar outra vez, a lamparina?"
- "Dá. Acho que dá..."
- "Mas não sabes..."
- "Não. Mas entra na tua e não penses muito nisso. A gente vê-se, caso dê."

Nessa noite de vendaval, decidiu

Cavaco Silva, imbuído de um vertiginoso espírito iberista, encontrou a solução para combater o isolamento transmontano: "fortalecer as relações transfronteiriças", reflectiu o presidente, como se de súbito se lhe tivessem acendido um fósforo na mente tecnocrática. "Mais década, menos década, lá chegará o betuminoso. Enquanto não chega, Espanha está ali mesmo ao lado", pensou. Isto já não disse, mas sempre falou em Salamanca como, digamos, pólo de transfronteirização. E em Zamora. "Hum... Zamora". Está ali a dois passos.

Funduras

A mulher entrou. E vinha simples, na sua entrada, que eu antecipara por a ter visto a rondar no vestíbulo da indecisão.
Os nossos olhos tinham-se encontrado na esquina da minha pressa e o aceno breve que nos demos, na altura, bastou-me. A ela não: viu-me logo.

Eu tinha-me sentado, naquela secura podre de ver análises, e ela impôs-se-me, brandamente, num "não me conhece?" que me gelou.
Reconheci-a logo. A viúva do Martinho estava ali, de pé, diante do meu corpo agachado na cadeira baixa, como se estivesse desrespeitosamente assentado nas lombadas dos livros das minhas histórias antigas, ocupado agora em tentativas envergonhadas de futuro.
"Claro que conheço. Já lá vão três anos. Está bem?"
"Não. E o senhor?"
"Também vou indo."

E nem ela me estendeu a mão nem eu me levantei, que as histórias são memórias que eu já disse, e duram o que eu já disse que duravam.

Numa noite de vendaval, pensava

Uma forte ventania é atraente como um abismo a atrair alguém que perdeu as graças do mundo. Impõe-se como um destino poderoso, irresistível, a que se assiste com o fascínio de quem se apercebe de uma revelação divina.

24.11.06

Desgostos de besugo

Todas as histórias terminam. É o fim do seu tempo.
As histórias costumam ter a duração do protagonista, não a do narrador.
Não conta outro tempo, nas histórias.
Nem nas curtas.

23.11.06

Esguichos de besugo

O Aristides é benfiquista e já só pesa 38 quilos. Estimativas feitas em pé, a homem deitado. E está a morrer, duma maneira quase alheada da sua amargura notória, lentamente.
Veiga, para ele, é uma veiga doce que ele procurasse. Mais nada.
E a morte, nele, parece uma colina que se descesse bem: nunca se descem assim, certas colinas, mas eu não sei a dele e é ele quem a desce.

De maneira que ontem, antes de sair, fui-lhe dizer que cada golo do Benfica seria, para ambos - mais para ele, mas para mim também - uma patada na barriga do destino. Ele sorriu sumido.

Hoje, antes de me dizer que "não posso ver o seu Sporting, que não há Sport TV no hospital, mas veja lá se logo ganha", pediu-me que o virasse, para lhe aliviar a parte apoiada dos ossos. E sorriu malandro, enquanto eu o voltava no regaço do fim, acusando-me de dualidade de critérios. Tal e qual.
Eu percebi: nos meus olhos devia ler-se que, da mesma forma que gostei de lhe dar a vitória do Benfica - se fui eu que lha dei, que eu aprendi isso de dar, mas posso dar assim tanto? - também gostei muitíssimo do golo do Celtic, que a apoucou nos objectivos.

Amanhã, que vem já aí, espero que o Aristides ainda esteja capaz de me dizer uma palavra de consolo, "foi o destino que não quis mais patadas, ó besugo!", com aqueles olhos brilhantes de sacanita, lobo magro que me consome enquanto se consome na sua fome imperativa de desgarrrado da alcateia, consumições diferentes do que é para consumir em cada um de nós, cúmplices desiguais do mesmo crime de sabermos ambos quase tudo, fingindo que não.

Egoísmos de besugo

Fui lá vê-lo e nem sequer tinha de ir.

Isto é uma frase que não me soa bem dentro. Não aprecio "nem sequeres". Entoam, mas não me soam dentro.

Fui lá vê-lo porque tinha de ir.

"Ter de ir" não significa mais do que isso mesmo, "ter de ir".
E "ter de ir" foi uma necessidade minha, ninguém me chamou lá. Problema meu.

21.11.06

A tecnologia ao serviço da prova do estado de saúde no contrato de serviço doméstico

Logo de manhãzinha recebi a mensagem (multimédia) no telemóvel, informando-me que "hoje não vou trabalhar porque estou doente peço desculpa até amanhã".

E juntou foto sua, deitada numa cama, comprovativa da invocada doença.

20.11.06

Dicções carismáticas

Vasco Pulido Valente, na TSF, a dizer que "guando se esgreve uma biografia esdá-se a simpadizar com o personagem".
Lembrei-me, claro, do Paulo Bento.

19.11.06

sargentaria oficial

O Marêtme diu Fiunchèl é, provavelmente, a agremiação desportiva mais azeiteira do hemisfério norte.
Isto explica-se, porque o Benfica é trans-hemisférico, segundo afirmam, e não é - por conseguinte - para aqui chamado. E, no hemisfério sul, enfim, há o Flamengo. O mengo. O mengão. Aquilo que lá há.

Bom. Do que se trata aqui é de ganharmos essa merda que temos hoje com o Marêtme, não é doutra coisa.
É ganhar essa merda, lá na poia deles. E não há cá "nhanhanhanhãs".
Entendidos?

Andor, destroçar, ide fazer o que tem de ser feito. Fazei-o bem, serena e eficazmente.
Não tenciono falar mais disto.

Passar sem mim há-de ser fácil

A fé não tem nada de irracional. Tem muito é de cegueira.

A fé é isto: juntarmos coisas, pensamentos, conversas, selos, cheiros, cromos, cromados, preservativos, beijos, sons, lamúrias silenciosas, manchas de tinta, amuletos, pedras d'água, enfim, voltando ao princípio, juntarmos coisas que - temos fé - irão fazer acontecer aquilo que queremos que aconteça.
A fé é só isto, mas também não é menos do que isto.
A fé é participarmos do destino sem pagarmos bilhete de sócio de destino: só pagamos bilhete de fé. São os mais baratos.

Quando a fé se proclama numa tasca, ou numa cervejaria fatelas, mesmo numa churrasqueira, chama-se fezada. Fezada é o diminutivo azeiteiro de fé. Eu sei o que estou a dizer porque não sou um homem rico, nem educado e, além disso, alimento-me bastante mal e em sítios contraproducentes

O que é azeitar a fé? É untá-la de margarina gorda ou de óleos um bocadinho "fulas".

É como fazemos com as mulheres que um dia cairam na asneira de nos fazerem pensar que nos amavam e, depois, fartas de nós, nos informaram do seu recente desamor por nós: quando falamos delas, numa tasca, já um bocado tocados, já um pedaço para além de Bagdad em termos de ácido tartárico nas meninges - que não há outra razão para se ser burro que a burrice propriamente dita e o excesso etílico, o resto é toxicologia forense injectável ou má carga genética -, quando falamos delas, dizia eu, são umas gajas reles. Se já nos trocaram por outro, ainda por cima, são umas putas zarolhas.
Se, por outro lado, ainda nos não substituiram por outro artolas qualquer e nos dá para a ternura, caramba, mesmo na tasca, tendemos a convergir para o discurso do "ainda há fé" e bradamos, babando grosso, que "eu ainda gosto muito dessa cabra e parto os cornos ao primeiro que diga mal dela aqui!", antes de alguém nos trasladar para casa, sim, para nossa casa, imediatamente antes do coma hospitalar.

A fé é isso, o que proclamamos e sentimos quando não estamos na plena posse dos nossos sentidos todos.

Os cegos são bons nisso, fundamentalmente por não estarem na plena posse dos nossos sentidos todos.
Eu estou a ver que tenho fé nisto.

Samba para Vinicius

Toquinho e Chico Buarque

17.11.06

Da relatividade

Não surpreenderá ninguem que eu diga que Scolari fez muitíssimo bem em não poupar Cristiano (dispenso Ronaldos) no jogo de ontem.
Fundamentalmente porque se notou que Cristiano queria jogar e, reparem nesta coisa estranha, Cristiano tanto queria jogar que, quando marcou aquele golo extraordinário - e agora pensem nisto, ele vai naquele movimento uniformemente acelerado que é só dele e, de repente, chuta; e quando chuta, parece que pára, pára mesmo, como se tivesse sete ABSs; e pára, claramente, a ver o destino da bola, que é, afortunadamente, o destino que ele lhe deu, o canto da baliza do "cazaque" com nome de "enxadrista", e isto é muito raro -, fez simulacros de piretes para Carlos Queirós, ou, se não eram para ele, eram para outro tipo, qualquer um, um que não percebesse nada de vontades nem de coisas de canalha, um que estivesse ali apenas para ver detalhes parvos à volta do essencial.

Os jogos ganham-se assim e assim se perdem. Se entrar o Carlos Martins, claro, dificulta tudo. Mas resulta na mesma, ou assim parece, se correr tudo bem.

O principal defeito de Scolari é ser teimoso como uma mula. Não vejo virtude melhor em mais ninguém que não tenha este defeito.

O direito a ser deixado só

Numa entrevista à TSF (que me reteve hoje, imagine-se, dentro do carro, já estacionado, até acabar), Luisa Neto (professora auxiliar da faculdade de Direito da Universidade do Porto) falou de uma concepção inovadora do corpo como um bem (coisa, no Direito), portanto susceptível de ser objecto de um direito fundamental. A questão prende-se com o grau de disponibilidade dos direitos fundamentais cujo exercício é restringido, segundo Luisa Neto, em consequência de concepções simbólicas castradoras do conteúdo do direito. Exemplificou com a licitude de um corte de cabelo, por contraponto ao suicídio assistido, este moral e juridicamente censurável. O corpo humano será, neste sentido, livremente disponível pelo indíviduo titular do direito.

Desta construção jurídica extraem-se ilações curiosas: por exemplo, a de que este direito fundamental, assim concebido, legitima que o indivíduo renuncie a viver e escolha suicidar-se. Ou a de que é irrecusavelmente legítimo reclamar um direito absoluto à privacidade, inviolável e interdito a ingerências sociais ou, em geral, públicas - aspecto este que, aliás, ganhou actualidade inédita com a implementação de meios de controlo de circulação de pessoas após o 11 de Setembro. E aqui, no quintal blogosférico, bem mais comezinho e pitoresco, a propósito do direito ao anonimato (ou, se se quiser ver na perspectiva dos detractores, do dever de identificar o autor das acções).

Nos Estados Unidos está desde o século dezanove consolidada (e constitucionalmente consagrada - quem diria, ou melhor: eu não diria) a ideia da esfera de privacidade de cada indivíduo como um valor supremo: o designado "right to be left alone", ao qual os partidários do aborto americanos foram encontrar o fundamento do direito a não procriar (que eticamente tem validade equivalente ao direito a procriar). Note-se que tudo isto acaba de vez com o argumento confrangedor e, talvez, já obsoleto do "direito à barriga" para sustentar a ideia da despenalização do aborto. Como é evidente, esse pretenso direito a uma dada barriga é bem pequenino, comparado com esta recolocação civilizacional dos direitos individuais. Esse direito a não procriar, de conteúdo amplo e, exceptuando as sociedades mais funcionalizadas à procriação (que em geral coincidem com as sociedades mais tributárias das doutrinas católicas), irrecusável, é justamente o aspecto mais decisivo que dá fundamento ético ao aborto. É uma construção americana, mas é da "boa américa" (sim, sou anti-americanista ao ponto de admitir excepções).

15.11.06

Primeiro e último episódio daquilo da "Grei"

Um grupo de tipos e de tipas um bocado alternativos (sendo que a "artista principal" lembra vagamente a Elsa Raposo e, a julgar pelo aspecto geral do espécime, deve ter começado a tirar o curso aos vinte e oito anos) começa o seu internato geral num hospital central americano. Todos começam o tirocínio querendo, já, à cabeça, ser cirurgiões e, por estranho que pareça, acham que ser isso é uma coisa extraordinária, como quase já só se vê em mecânicos de automóveis e canalizadores. Faço notar que estão sempre a usar a expressão "fix it", o que revela tendência para consertos e trabalhos de "bricolage".

Logo no primeiro dia, uma chinesa razoavelmente feia revela que é competitiva até às chanatas ortopédicas que usa nas patorras e, além disso, que pratica preços baixos na competição, como compete aos competitivos em geral e às putas competitivas em início de carreira, enquanto a artista principal - a putativa Elsa Raposo - passa o episódio inteiro aparvalhada, porque descobre que um dos gajos com quem deu uma das suas derradeiras quecas ocasionais é assistente (leia-se especialista, de cirurgia geral, no caso, embora o indivíduo também opere cabeças, que aquilo é um hospital de polivalentes, o que nem sempre é bom, basta lembrar que o Miguel Garcia é polivalente, tanto joga a central, como a defesa direito, como no banco, e é o que se vê) dela. E é logo um gajo que detecta hemorragias subaracnoideias por angiografia, que não consegue vê-las na TC, porque "ah, e tal, era uma hemorragia muito pequenina" - embora provocasse um "mal epiléptico" à doentinha, tanto que ela quase que morria de espasmos tónico-clónicos generalizados, era pequeníssima, a hemorragia, está bem, ok, boa malha.

Também no primeiro dia, um dos internos que se vê logo que estão talhados para fazerem de saco de pancadas da maltabuédacompetente do seriado - e para comover o povo com uma dose mediana de angústias existenciais nos intervalos dessa porcaria - executa uma exérese do apêndice a um tipo qualquer, sob orientação dum preto licenciado que parece mais novo que a artista principal, é certo, mas que já é cirurgião e, pelos vistos, não se percebe se por ser preto se por ser estúpido, deixa correr à balda as complicações causadas pelo interno, até se chegar a um limite qualquer em que lá intervém, já com fezes a sair do intestino para a cavidade peritoneal do figurante, como quem fosse preto mas se chamasse Mesmer.

Para não ir mais longe, o primeiro "turno" - que não se percebe bem se decorre numa urgência geral ou se acontece numa urgência cirúrgica, ou se é tudo ao molho e fé no Miles Davis - dura 48 horas. Coisa que já nem nos Estados Unidos se vê. Turnos de 24 horas já fazem mal que chegue. Os cocós acabam o turno de 48 horas, que acharam cansativo, com ar de quem ainda fazia dois episódios da Floribella ou um e meio dos morangueiros com castanhas, e lá vão à vida deles, como se aquilo fosse uma merda dum jogo da PSP ou dum caralho duma X-Box. A artista principal vai visitar a mãe, que parece um vegetal, só não se percebendo se chega a regá-la.

Era preciso esta merda? Era? É esta merda que o "pípel" gosta de ver e curte bués?
Se é, foda-se. Que caralho de esterqueira formatadora de paspalhos me vinha agora pela pantalha adentro. Acabou-se!

Na alucinose, ao menos, está lá um objecto; nisso, difere da alucinação.

Eu não sei se o Francisco contou isto só para me enervar. Não deve ter sido, as únicas pessoas que dizem coisas só para me enervar são a minha Mãe e (às vezes) a lolita. E os meus filhos, vá. Mas o certo é que, não tendo querido enervar-me, atingiu o meu objectivo. Eu ando, de facto, aqui para me enervar.

Portanto, é ligeiramente enervado que afirmo que Lobo Antunes não consegue ter um momento de lucidez sem o fazer seguir doutro de, enfim, digamos... de alucinose.

Está claro, a Pena é (também) uma Rampa.

É uma pena este blogue não ter mais leitores.
Não que nos não bastem os que tem: bastam-nos bastante.
Mas a pena é uma coisa que se sente apesar de tudo, não por causa de.

Lições de anatomia

O Baltasar era engraçado. Tanto era, que daquela vez se fodeu.

O nosso exame prático de Anatomia era a famosa gincana, não sei se ainda é.
Era assim: juntavam-nos a todos, como gado em ânsias, numa saleta em que, se nos mexêssemos, tínhamos - praticamente - relações sexuais com quem estivesse à nossa periferia. Uma espécie de curro colectivo. De trinta em trinta segundos tocava uma campainha (e é preciso lembrar que, no início dos anos oitenta, o soar duma campainha remetia directamente para Agildo Ribeiro, Bruna Lombardi e múmias paralíticas) e um de nós penetrava no corredor do teatro anatómico, onde o senhor Júlio fazia de fiscal desdenhoso.

Pelo corredor afora, dez mesas tinham duas peças anatómicas cada uma. Vinte peças ao todo. Isto é bom, para que se perceba que a anatomia é a génese da medicina interna: na anatomia aprendemos a decompor o corpo em peças, na medicina interna a juntá-lo todo (como na cirurgia geral e na clínica geral, no fundo) e a pensar que aquilo funciona tudo junto; coisas de "mais tarde".

Bom. Havia trinta segundos para cada peça. Identificava-se (ou não) a estrutura apontada, em cada peça, por um alfinete daqueles cabeçudinhos, escrevia-se o nome da "estrutura" no papel (ou não), e passava-se à seguinte, que atrás vinha gente (e podia ser alguém com quem tivéssemos estado a ponto de ter tido relações sexuais no curro, relembro).

O Baltasar, numa peça que tinha um alfinete no ligamento redondo do fígado, escreveu "fígado".
Numa que em o "cabeçudinho" indicava uma pirâmide renal, escreveu "rim". E, numa em que estava assinalada a cabeça do epidídimo, escreveu - assim mesmo, ó puristas! - "uma coisa num quilhão".

Podiam falhar-se quatro perguntas, apenas. E o Baltasar afiançou sempre que tinha estado bem nas outras todas, embora enervado pelas vinte campainhadas. Ainda poderia, segundo ele, errar mais uma.
De maneira que se gerou ali um mito efémero, em que o Baltasar figurou como uma espécie de mártir da prática canónica, ficando conhecido como "o desgraçado que se fodeu por não saber dizer textículos".

Tretas

Vem aí "Grey's Anatomy", a série que ribomba!

O título é engraçado: os criativos americanos lembraram-se que o compêndio de anatomia que ensinou ossos, articulações, músculos, nervos, vísceras e restantes langonhas a mais que duas gerações de "frangos em ânsias de estetoscópio ao pescoço" - olhem eu aqui! - se chamava "Gray's Anatomy", em memória de Henry Gray e, vai daí, fizeram o significativo esforço de parir uma "ansiosa interna geral" de nome Grey, afinfando no título do seriado o trocadilho originalíssimo do nome do anatomista com o da franga. Os "es" pelos "as".
Oxalá tenham pago bem aos gajos, se bem que metade dos espectadores da futura série nem sequer entenderão o virtuosismo criacionista. Mas gostarão do ritmo "yep, cool, bora lá" que parece que vão adoptar, para captar a malta "xovem".

Ainda não vi nenhum episódio, mas continuarei fiel ao ER, isto é como o sol, quando quiser chafurdar nos sonhos da minha lama: na que eu faço e na que me enlameia sem eu querer.
Prefiro rever pela sexta vez o episódio em que o Benton vai para o Mississipi fazer clínica geral do que ver cinco minutos do making of desta merda plástica e acelerada, como se fosse para pastilhados.

Quanto ao House, preferia quando o gajo fazia de aristocrata imbecil, no Black Adder.
Eu depois digo mais qualquer coisa. Por agora era só.

14.11.06

Abluções

Quando as hienas decidiram atacar a corça que cuidavam morta, ou quase morta, foram surpreendidas pela vivacidade desta e pela presença firme, junto dela, da maioria dos animais daquela selva.
Tanto assim foi, que ganiram histéricas e fininho. Ganiram-se naqueles risos panascas do costume e recuaram, arrastando o cu inflamado pelos carreiros secos que tinham aberto à vinda.
Nenhum animal da selva lhes fez mal, mas quase todos estavam decididos, em silêncio, a esquartejar hienas, se elas se atrevessem a voltar.

O interno registou o sonho e pensou que era dos melhores que tinha tido, enquanto se lavava da noite.

Ponto de ordem

Às vezes, desatentos, tomamos silêncios incidentais por silêncios deliberados. Só quando nasce um qualquer cisma se percebe que a pior espécie de voluntarismo está, não no silêncio que supunhamos respeitoso, mas sim no ataque desabrido a quem ficou do lado oposto.

(PIB) Podemos Ir, Belarmina?

Quem escreve assim, airosa e desempenadamente, de certezinha que participa no PIB pela via da indústria; ou então pelo orifício da agricultura.
Palpita-me tratar-se, isto francamente, ou dum jovem agricultor que lavra pujantemente a seiva da vida, ou dum industrial altamente produtivo e inovador, isto do ponto de vista subjectivo.
Pelas vielas dos serviços, santa paciência, este génio não entra. Serviços, ele? Nem pensar. É que nem na tabuleta lá do escrit... da unidade industrial!

Nota: somando aquilo que ele diz, dá 100%; isso é bom; verifiquei, porque estes tipos às vezes precipitam-se.

Sim, que pensarão eles?

Pensarão assim:
"O Miranda, se em lugar de o aumentarem, diminuissem o salário mínimo, lá no país dele, metia-se antes com os gajos da Coreia do Norte, não era? Ou nós já somos agora menos competitivos que os norte-coreanos, ou seja, traduzindo para mirandês, já passamos mais miséria que os gajos, de maneira que éramos sempre nós a entrar no exemplo do pequeno génio?".

Perguntas à inteligência

Bom, deve ser pelo mesmo motivo que os tipos do Blasfémias têm o aspecto que têm, um azar do caraças...
Não?

Teoria daquela espécie

O futebolista Bruno Alves, que fez perder inúmeros clientes ao barbeiro que lhe corta a trunfa, afirmou ao "Francesinha" (peço desculpa, foi ao Jogo, era a brincar) que Jesualdo Ferreira o tornou um jogador mais inteligente.

Quem teve oportunidade de apreciar a inteligência ao serviço de futebol demonstrada por Bruno Alves em anos anteriores pode sempre afirmar, cheio de má fé, que "ó pá, isso também não era nada difícil!".
Contudo, é notório que o evoluído e tecnicista defesa central do FCP exibe, agora, uma maior maturidade e "savoir faire" no seu trajecto pelos relvados. Basta ver que, no ano passado, enfiou uma galheta no Nuno Gomes e foi para a rua; e agora, eventualmente derivado aos ensinamentos (e respectivos efeitos dos mesmos na sua avultada massa neuronal) de Jesualdo Ferreira, já consegue afiambrar patadas em jogadores do Vitória de Setúbal e arrancar uma falta a seu favor, tudo isto no mesmo lance.

13.11.06

Aquilo pesa, mas arremessado espalha muito

O interno regressara ao Monte da Virgem depois de passar vinte e quatro horas no hospital de baixo, sem dormir, e pretendia passar visita aos doentes internados (internos como ele, mas doutros internatos) numas sossegadas duas horas e, depois, ir dormir alguma coisa.

O gordo, que pensava que mandava só porque mandara até ali, e não tomando na devida conta o ar cansado e o humor extremamente fodido de que o interno estava penetrado, dirigiu-se a ele dizendo-lhe "tens de voltar para lá, que faltou o Rocha!".

O interno arremessou-lhe os processos ao focinho, e eram doze, tendo-lhe acertado apenas uma pequena percentagem, no que foi surpreendido pelo director de serviço, que logo se refugiou, com um ar estranho, no seu gabinete, como se fosse só para ver se quem lá entraria primeiro seria o gordo ou o interno.
Foi o gordo, que saiu logo a sair e, pelos vistos, "foi para lá".
Nessa tarde, o interno dormiu quatro deliciosas horas que lhe souberam acrescidamente bem.

Isso da fuga de cérebros, de facto, tem que se lhe diga

Por exemplo: se o João Miranda fosse trabalhar para o estrangeiro por correrem com ele do emprego, ou assim, seria mais um caso de fuga de cérebros?
Eu creio que sim. Também seria um caso de fuga de cérebros. Mas seria um dos casos mais estranhos de fuga de cérebros de que há memória, porque eu vi uma vez uma fotografia no saudoso Vilacondense em que o João Miranda está com ar de quem o cérebro já lhe fugiu e aquilo já foi há muito tempo.

Lá está, uma fotografia não é uma TC à cabeça. Um sardão não é um tigre da Malásia. E por aí fora.
Ou às tantas foi da luz, não sei.

Façamos de conta que eu não escrevi isto. Aliás, quem é que escreveu esta merda estúpida?
Há-de ter sido o boi do interno.

Eles raspam-se mesmo...

A lolita escreveu sobre aquilo do ministro da economia e eu devo referir que o ministro da economia tem um nome que me faz lembrar daqueles grandes armazéns, tipo Marques Soares.

Posto isto, também gostava de saber como é isso de evitar a fuga de cérebros.
Vi imagens do congresso do PS, escutei o Zé Sócrates, atentei em algumas coisas ditas por Marcelo Rebelo de Sousa, assisti àquele programa do Gato Fedorento (aqui talvez valha a pena dizer que é penoso assistir a um programa em que participam, notoriamente, dois gajos e meio a mais), vi um bocadinho do Lille - Marselha, e já entendi que há casos flagrantes de fuga de cérebros.
Mais: que há casos de fuga de cérebros em que os possuidores dos cérebros persistem na movimentação, como se não tivessem notado a fuga. Está certo, isto é conforme se verifica nas galinhas e em grande parte dos guilhotinados, mas nos casos que referi (e, sobretudo, nos que não referi, por pudor, ou por medo de processos judiciais) parece que dura mais tempo.
O meu problema é que nem sequer sei se o meu cérebro já me fugiu. E, se já me tiver fugido, onde estará. Não que me faça falta, mas tenho um certo receio de vir a ser envergonhado, um dia qualquer, por um imbecil dado à parvoeira, que faça merda e que depois venha para a televisão dizer "ah!, azar!, este cérebro nem é meu, é do besugo...".

12.11.06

Como evitar a fuga de cérebros

Se Teixeira dos Santos se mostrou temerário com Jardim, é de crer que mantenha a persistência também no corte do gordo salário do Director-Geral dos Impostos. O curioso é que, ao mesmo tempo que se assevera que não se admitirão este tipo de excepções manifesta-se a vontade de o reconduzir no cargo, mas auferindo um vencimento oitenta por cento inferior ao actual - o que, convenhamos, é uma proposta dificilmente recusável. Neste quadro, várias alternativas se perfilam:

1. Encontrar um patrocinador (que tal o Millenium?...), decalcado do modelo de contratação "Scolari";
2. Aumentar a receita fiscal (usando o método tradicional e infalível do aumento das taxas de iéreéss - o imposto que nenhum assalariado esquess), indexando esse aumento a um "sucess fee" do Director-Geral que consubstanciaria, assim, um incentivo ao bom desempenho;
3. Contar com um qualquer espírito de missão, por um lado, e a sede de protagonismo, por outro, do gorducho Director, que o decidirá a continuar a dedicar-se à causa pública.

Pessoalmente, agrada-me a primeira. Se não puder ser o Millenium, então que seja o Atum Ramirez.

Já fora de Maio

O interno deixara há muito tempo de ser interno, mas continuava a sê-lo. Como sempre. Coisas de aprendizagem.

Espasmos

O interno estava a estudar para deixar de ser interno quando lhe entrou pela vida daquela noite adentro o outro interno, que lhe trazia uma visita.

- Tu és a...?
- Pois sou. Estás a estudar?
- Estou. Estou a ler sobre isto das doenças auto-imunes, já ouviste falar do Lup...
- Posso sentar-me aqui, na tua cama?
- Podes, desculpa estar de costas. Se quiseres café, está feito, no fogão. Aquece. O outro interno?
- Foi para o quarto dele. Posso?
- Senta-te, desculpa. Já acabo isto.
- Cheira aqui a fumo.
- Eu fumo muito. Abre a janela.
- Deixa estar.

Ainda o interno não tinha conseguido abstrair-se da presença dela, que mal a conhecia, já tinham passado alguns minutos. Passados os quais, poucos que foram, se escutava, vindo das costas do interno, um resfolegar grosso que pareceu, ao interno, a inevitável gosma do desejo. E, por lhe parecer assim, voltou-se para trás afável e sossegador, como se fosse encarar uma inevitabilidade que lhe competisse mitigar.

E competia.

Passados quinze minutos, o interno mais a asmática estavam na urgência do hospital grande, onde o interno tentou explicar ao colega de serviço o que se passara, sem sucesso, que ele só bradava, por entre ordens de aminofilinas, oxigénio e corticoides, que "só fazeis merda!, é só merda o que fazeis!".

E não era o caso.

O quarto do filho



Começa pueril como um embalo e deriva, sem se contar, para a melancolia da escala menor. A memória triste da ternura.

Rotas

O interno ia jantar, todas as quintas feiras, com outros internos que conhecia. Era uma cisma que durou esses seis meses aos outros quatro, mas que perdura ainda hoje no interno, mesmo aos domingos.

Éramos cinco.
Era sempre no "Cidade" que se comia, inteira, aquela noite de quinta feira toda, porque ficava à mão de quase toda a gente, a noite de quinta feira e a cidade velha à mão da noite. As entradas eram sempre búzios, já sem casca, mas todos ouvíamos o mar nas cascas que faltavam e no vinagrete que abundava.

Depois variava.

A última paragem era na Ribeira, no Folie, que já nem sei se há. Um dia, o Zé Rodrigues perguntou a uma das alternadeiras incipientes que se sentavam connosco na última paródia "se não pagava nada", e fomos corridos dali com modos maus. E justamente.
Ficámos aborrecidos com o Zé Rodrigues, não por termos sido corridos, isso era o menos, mas porque não entendíamos por que tinha ele perguntado aquilo, por que melindrara ele a quinta feira assim, sem jeito e sem motivo.
Ele disse que era só para variar. E penso que os seis meses de nós os cinco se esgotaram nessa noite, na noite em que o mais instável e bonito de nós os cinco quis variar dos outros quatro. Variar é uma coisa que estraga todas as rotinas, despindo-as do sentido inteiro que pareciam ter, mesmo que não tivessem tido nunca sentido nenhum.

11.11.06

Pequena estória dos nervos

O homem era grande e forte e preto, e parecia perigoso porque bufava muito e não parava quieto, a força toda em cada movimento. A triagem esvaziara-se de quem conseguia andar, como se quem podia andar quisesse dar-lhe espaço para aquela fúria.

O interno não sabia que lhe dizer e pensou, portanto, na sua sabedoria de quem só sabe o que sabe e ignora o resto, que ninguém mais saberia. E, prevendo essa desgraça de ignorâncias, preparou-se para tudo sentindo-se só.

O homem cirandava, pesado e tenso, pela sala ladrilhada. Ia dizendo coisas, sempre a mesma coisa, parecia sempre a mesma coisa. "Tensão, tira!... Tensão, tensão, tensão, tira!". Era sempre a mesma coisa. Era.

O interno cuidou estar perante um hipertenso que, em crise de elevações daquilo das pressões, estivesse possuído duma encefalopatia diferente, que o interno ainda não vira. E, já que alguém tinha de fazer alguma coisa e era ele que ali estava, resolveu interpelar o homem de acordo com a sua interpretação do homem, balbuciando "sente-se aqui, acalme-se, eu meço-lhe a tensão", enquanto se agarrava todo ao aparelho de coluna de mercúrio.

- "Tu não! Tu não. Sai! O César! Chama o César!". Mas alapou no banco.

O César. O César era o internista de serviço, o desdenhoso César, o César que sabia tudo e não ensinava nada, o César que chamava, a todos os internos, "ó rapaz!", sem se entregar à maçada de lhes decorar os nomes "porque estão sempre a mudar, o raio da canalha, logo que prestam vão-se embora!". O César era velho, tinha quase quarenta anos. E nenhum interno, nos seus sonhos de futuros longe, queria parecer-se com o César, afastar-se dele sim, ser como ele não.

- "Chama o César! O César! Tensão! Chama! Tira!".

O interno disse-lhe que sim, que ia chamar, e foi. Voltou com ele, com o César, pensando que iria assistir, como sonhava, ao esmagamento do César. Que lhe tinha respondido, quando o chamara e lhe contara o que se passava, que "não percebes nada desse preto, pois não, rapaz?", o que o magoara novamente na sua falta de nome assim exposta, mesmo que apenas entre os dois, daquela vez.

- César! Anda! Tensão. Tira! Tira tensão!
- Eu tiro, rapaz, eu tiro. Cala-te, fica sentado. Cala-te, quieto, eu tiro-te a tensão.

E o interno viu César colocar o braçal, com mãos que não tremiam, no braço esquerdo do homem grande e tenso. E viu-o insuflá-lo calmamente, e dizendo-lhe sempre, de cada vez mais calmamante, "calma, Mo, calma!", até aos duzentos e quarenta.
O homem, sossegou, numa tensão que lhe mostrava as veias túrgidas da força toda, agora calma, como se tudo ao que tivesse vindo fosse começar ali, a partir dali.

E tudo começou a partir dali, de facto, como se fosse apenas para que o interno se educasse.

O César foi afrouxando, num hábil movimento de dedos, a rodinha que esvaziava o braçal, quase em câmara lenta. Um milímetro de mercúrio de cada vez, muito lentamente, e sempre falando calmo com o homem grande e preto que continuava a dizer "tira, tensão, tira! César, tira!", mas ambos cada vez mais juntos na calma que ali se criara sem razão nenhuma que o interno percebesse, "eu tiro, Mo, eu tiro, eu vou tirando!", "Tira, César, tira!", e a coluna de mercúrio sempre a baixar, na lentidão de César e na precisão de Mo. Até que, aos 100 mm, César falou de novo e perguntou ao preto se sentia que a tensão estava a sair, "sentes sair, Mo, já sentes?", ao que o homem grande respondeu que sim, que já, mas "tira mais um bocadinho César, tira mais!", e o César desinsuflou, sempre devagar, até ao zero, o braçal antigo de muitas medidas e retiradas, altura em que o homem grande e preto se levantou e disse "tiraste, César, já não há tensão, tiraste, tiraste toda!", e o César lhe perguntou "estás bem agora, Mo?", e já estava.

Tanto que saiu logo a seguir, estranhamente calmo e depois de abraçar César, que depois disse ao interno "era a tensão, rapaz, era só tirar-lha, é só o Mo, aprende a conhecer o Mo: quer tirar a tensão, não a quer medir, foi o teu erro, não sabes português".

E o interno passou a detestar César com mais respeito, que é um detestar muito melhor.

10.11.06

A baba e os olhos

O interno passou pelo meio das macas, cada uma delas com um corpo em cima, que atafulhavam a saleta de triagem-homens. Havia várias, e algumas estavam oblíquas, tocando-se por vértices.
Para chegar aonde precisava, teve de desviar algumas. Ao desviar uma, tocou num corpo, que logo ameaçou despenhar-se dela abaixo, resfolegando. O interno, à força de antebraços, recolocou na maca o corpo que lá estava e reparou, ao fazer isso, que se tratava ali dum corpo jovem e bastante vivo, que se babava bastante. E esse corpo tentou limpar a baba à bata do interno, enquanto babujava um gemebundo e irascível "fodo-te!".
O interno repeliu as beiças do baboso com um puxão gentil na bata e seguiu para onde ia. Caminho pequeno, até à mesa das análises, que tentou ler mantendo-se de costas para o caminho, porque lhe tinha sido penosa a caminhada e pouco bela.

Sentindo restolhada atrás de si, logo depois, o interno virou-se de repente, naquela coisa premonitória que por vezes temos de que "isto é comigo".
E era.
Vinha o baboso, já de pé e babando-se mais, de ferro em riste, era um daqueles suportes para soros, dos antigos, que eram de ferro, levantado e já a pontos de se baixar nas costas do interno.

Vários dos corpos antigamente inertes no cimo das macas se tinham erguido, perante a restolhada, bradando alertas que eram mais para dentro que para fora. "Debandar!". Tanto que se levantaram e sairam, lestos, bastante menos mal de si do que o interno pensara que estivessem.
E o baboso ali, traidamente em pé, subitamente indeciso, fitando agora olhos que o olhavam, em lugar de fitar as costas fáceis que o motivaram às melhoras do levante e da ferrugem.
Mas, uma vez de pé, os babosos fogem - depois de hesitarem, como quase toda a gente, independentemente da baba que emitem e do lugar do corpo onde ela lhes chega - para a frente. E, berrando já, no desespero do desmascaramento, fez menção de desfechar o golpe que hesitara e que se lhe impôs de novo, porque tinha de se cumprir na baba inteira.

O interno, que tivera já tempo para o medo e que sentia agora raiva surda, agarrou-lhe o ferro, com ambas as mãos, e sentiu que o ferro se torcia. Mas não, o ferro é rijo, era apenas o baboso que se afrouxava todo, novamente, agora na moleza do imprevisto, e que desejava regressar à maca, às arrecuas. O que não conseguiu, porque o interno o transportou, ambos de pé e agarrados ao ferro, como gémeos que se defrontassem naquele ódio fraterno de se compreenderem e se detestarem pelo mútuo entendimento que preside aos confrontos tristes, até à parede, até o baboso se encontrar com ela e se lhe encostar, altura em que decidiu não permanecer mais de pé, escorrendo-se por ele inteiro e pelo muro abaixo, babando-se sempre, até ficar de cócoras, sempre agarrado ao ferro mas não fazendo força, desviando dos do interno os olhos que neles mantivera fixos enquanto recuava, desatando a gemer de novo, já doente outra vez, e depois berrando que lhe batiam, "eu fodo-te! queres-me bater! acudam!", o que era falso, como falsas eram já, como se provou nas entrelinhas da memória que agora consultei, mais de metade das coisas que ali se estavam a passar desde antes, muito antes, mesmo antes de o baboso se levantar, babando sempre, da baba inerte em que ali estava antes afogado, náufrago de jangada frouxa que estrebuchava mal no mar manso que agitara.

A meseta, por exemplo, é ibérica.

O nacionalismo português é vazio e sobranceiro. Revela-se neste orgulho ressabiado, quase invejoso, que invoca uma putativa intenção castelhana de nos transformar em mais uma comunidade autonómica. O iberismo, se significar a história e a cultura comuns dos dois países, não só não é incompatível com a identidade nacional como a engrandece. Mas cá cultiva-se esta pequenina mesquinhez estéril, da pátria absoluta desgarrada da península. Aquela sondagem em que quarenta e tais por cento dos inquiridos declarou agradar-lhe a ideia de juntar os dois países é prova suficiente: questionados sobre se gostavam de ser espanhóis, os portugueses dizem que sim, que até era engraçado para variar. Se isto é o tal orgulho pátrio, então esqueçamos esse improvável iberismo histórico-cultural e deixemos o chavão para o Mário Lino, para que ele se entretenha com las inversiones de betão e catenária em Castilla-la-Mancha.

9.11.06

Ora que excelente cabeça de pescada, hem?

- ... E profiro, por conseguinte, a seguinte sentença, que é, portanto, efectivamente, ora vejamos, exactamente, que está o senhor desde já, por este tribunal, condenado à morte por enforcamento.
- ...
- Vamos agora prosseguir o seu julgamento, que havia aqui mais coisas. Efectivamente, ora deixa-me ver a ordem de trabalhos... exactamente: agora é aquilo dos curdos. Vamos então verificar se também morrerá enforcado por isto ou se será só pelo que temos vindo a tratar.
- ...
-Não se preocupe, isto tem uma certa ordem de trabalhos. O senhor, condenado à morte, já está. Consegue alcançar isto? Bom. Sim, entendeu bem, está condenado a esticar o pernil por... ora, que cabeça a minha, ora deixa cá ver, Abghakhanni, hum... exactamente, por enforcamento. Mas há uma ordem de trabalhos, compreende? Há aqui mais temática. E ainda só temos reacções de regozijo do Irão, dos xiitas quase todos, do palerma do Texas e dos seus companheiros da alegria, e... pois, do inglês com vaidade no falar, exactamente, do Toni. A UE já condenou a sentença, telefonou-me um tipo há dez minutos e ainda há-de ligar o Zé Manel, aquele gordo sem olhos, que novidade, já estávamos à espera disso, mas ainda faltam duas opiniões folclóricas dentro da Europa: a do primeiro ministro português (aquele que, por acaso, é José Sócrates, vá lá, conforme podia ser José Rui, o primeiro ministro José Rui), e a daquela espécie de poeta bélico que sua das beiças enquanto traduz sonetos daquele grego... aquele sem ser o Karagounis... outro... o Peter Arca, exactamente, um que jogava no PAOK, falta portanto ainda o culto Vasco Graça Moura, que é dos nossos há muitos anos nisto de ser radical nas punições dos outros e nisso das outras coisas todas, ele é que nem dá fé disso. Por conseguinte, está a perceber, vamos prosseguir. Certo? Nós temos tempo!
- ...
- Não precisa de agradecer, isto obedece a regras, percebe? É mesmo assim, a sério. Vá, cale-se lá, o senhor ainda está vivo e nem o senhor nem a gente temos mais que fazer, vamos prosseguir, cale-se!, isto não é nada bater mais em mortos, isto aqui são coisas sérias, olhe o respeito!

8.11.06

The leading actors

Não vejo como se possa tomar partido, num sentido estritamente ético, na guerrilha instalada entre Sócrates e Alberto João Jardim. Se o primeiro quis surripiar ao outro o financiamento partidário, o segundo é, para usar um termo brando, um exemplar desvio de um sistema político democrático. Depois há o episódio lamentável do Marques Mendes, quando sucumbe (mas quem é que se admira?) à potência madeirense instalada.
Este sumarento capítulo da legislatura deve, pois, ser acompanhado com a atenção que merece: muita, mas na perspectiva da observação do grau de talento dos performing actors. Para já, devo dizer que o Alberto João me tem feito lembrar a Joan Crowford, só e decadente, a descer a escadaria no final do Sunset Boulevard (mas numa versão Parque Mayer).

Indecisões de génios

Um interno estava atrás da mesa da triagem, num hospital grande do Porto, eram quatro da manhã dum ano antigo.
Nisto, entrou um génio que se dirigiu a ele, alteradíssimo do seu genial estado, de pistola preta em riste: queria consulta.
O interno avaliou as possibilidades de que dispunha para se furtar ao génio, mas o habitante da lamparina mágica não era ele, era o génio. E acrescia que a janela que lhe ficava pelas costas estava suficientemente trancada para possibilitar retiradas estratégicas. Ainda pensou em chamar a polícia, mas que pode a polícia contra um génio? Isto acrescendo ao facto de já ter o génio, calmamente, passado pela polícia. A pistola devia vir-lhe no bolso, à entrada; e revistar génios enervados não é como despedir muçulmanos nos aeroportos de Paris: é muito mais difícil.

Estar assim de frente para um génio cheio de nervos e de costas para uma parede é pior que estar na barreira quando o Roberto Carlos vai marcar um livre. Não basta colocar as mãos nas partes. Mas tem de se fazer, se nos marcam um livre contra.

O génio interrompeu o silêncio que o interno ainda nem notara para o interpelar: "És médico?". Ao interno apeteceu-lhe retorquir que não, que era um fantasma de passagem, mas resistiu e disse-lhe "que sim, que era".

O génio derramou-se numa cadeira que parecia estar ali à sua espera e desapertou as calças, expondo um pénis pouco genial: escorria coisas verdes pela ponta e estava inchado. O interno, convém explicar, desconhecia os updates sobre "enlarge your penis" que agora percorrem o quotidiano de qualquer "wikipedia do spam", de maneira que lhe pareceu, aquilo, um esquentamento. Mas calou-se. O interno sabia que aquilo se apanha em certos sítios e tinha aprendido, já, que os génios nem sempre gostam de falar dos sítios em que apanham certas coisas.

"Isto está assim, está esta merda que tu vês, pá!".
E estava. De facto, estava uma merda impressionante e o interno, que ainda era impressionável, via-a.
"De maneira que estou na dúvida" - continuou o génio - : "Estou na dúvida se te dou um tiro nos cornos ou se despejo as balas todas nesta merda!".
"Despeja nessa merda, despeja nessa merda, despeja nessa merda...", pensou o interno com o pensamento que podia. Mas não verbalizou o pensamento. Em lugar disso, levantou-se e aproximou-se do génio. E disse -lhe, com a calma que não tinha encharcando-lhe a camisa, "vamos lá ver isso, então".

E pronto. Um esquentamento trata-se, se tiver sido apanhado com a mulher também se trata, é na mesma, mas ambos os problemas eram do génio, só a pistola era problema do interno. Até o génio sair com a receita, passando outra vez pela polícia, que estava ali a ver se nascia o dia, como toda a gente que gostava que não houvesse nem merdas nem problemas.

Os génios são isso mesmo e mais ainda. Os internos são ainda menos do que isso.

6.11.06

Porto temperado



Ainda está para vir o Inverno. Mas o Porto, entre o espanto e o alento, tem (quase) escapado ao Outono chuvoso.

1.11.06

Notas sobre o anonimato por uma desconhecida

Toda a gente discute o anonimato nos blogues a propósito das acusações de plágio dirigidas a Miguel Sousa Tavares que, como se sabe, foram publicitadas num blogue e com a cobertura protectora do anonimato. Mas ninguém se lembra, por exemplo, que este tipo de acusações são incontornavelmente torpes (ainda que intrinsecamente sejam justas) se forem, como foram, feitas em praça pública, e portanto mais com o propósito de engrandecer a polémica do que o de fazer justiça aos plagiados. O blogue (depositário público do laudo acusatório) foi apenas o meio utilizado - não é nem fundamenta essa torpeza. Tivessem os acusadores publicado as mesmíssimas acusações num jornal de grande tiragem e assinassem por baixo, com identificação exaustiva e endereço para contactos, e ainda assim a acusação seria torpe. Porque, para ser justa, teria sido dirigida ao MST pelos próprios plagiados e discutida e dirimida numa instância de resolução de conflitos própria de um estado de direito - e não através do lançamento das achas em chamas à populaça, para que esta condene ou absolva, respectivamente segundo o critério da intransigência pseudo-moralista e da idolatria histérica.

Com muita ligeireza e com uma boa dose de superioridade moral, toda a gente aponta o dedo ao anonimato, declarando-o fonte decisiva de descredibilização da blogosfera. Qualifica-se e condena-se moralmente a escrita anónima, mesmo a que seja anódina, inócua ou simplesmente banal, através da presunção inilidível de que quem escreve sem assinar esconde a sua identidade com o simples propósito de não assumir qualquer responsabilidade pelo que escreve e pelas consequências do que escreve. Na melhor das hipóteses, atribui-se o anonimato a uma espécie de fraqueza de espírito do autor, que lhe reprime a coragem de escrever com autoria identificada.

Neste ponto, entronquemos a discussão do anonimato com a da privacidade, tema que, nos últimos dias, também serviu para diversas declarações apologéticas da separação do público e do privado e condenatórias da instrumentalização do privado em função do público. Sendo, penso eu, indiscutível esse direito à reserva dos dados pessoais (quer tratando-se de figuras públicas quer de cidadãos sem qualquer notoriedade de massas), é importante que se tenha presente, no contexto da discussão do anonimato, que qualquer cidadão é titular de um direito inviolável à reserva da sua privacidade, que integra o direito à reserva da sua identidade sempre que o modo de acção não implique a necessidade da sua identificação. Por outras palavras, sempre que a sua acção valha por si mesma, sem que esteja condicionada pela identidade do sujeito que a pratica. É este o conteúdo positivo do direito ao anonimato.

Na delimitação negativa do direito, o indivíduo que pretende manter-se socialmente anónimo (sendo as razões dessa reserva do foro pessoal e, portanto, divulgáveis apenas na medida da sua vontade e, na mesma medida, insindicáveis por terceiros) deve exercer esse direito com respeito pelas regras éticas das relações sociais. As que impõem, designadamente, que qualquer acusação seja fundamentada e, na mesma medida, contraditada pelo acusado, o que pressupõe o conhecimento (ou a cognoscibilidade) do autor da acusação (entre parentesis, não resisto a fazer notar que, curiosamente, o Estado desrespeita esta regra ao admitir a possibilidade de qualquer cidadão denunciar anonimamente uma dada situação alegadamente ilícita às entidades fiscalizadoras e policiais) e a sua consequente censura e penalização, caso se demonstre que a acusação é, afinal, falsa ou difamatória.

De forma pacífica e quase sem reacção, tem-se instalado a ideia de que o anonimato se presume condenável e, portanto, passível de desclassificação moral do autor. Consolida-se o princípio segundo o qual um autor anónimo é um autor de segunda categoria, ainda que escreva com génio semelhante a Shakespeare ou Cervantes (sendo, neste caso, apontada a falha como um senão) ou ainda que escreva execravelmente e sem qualquer talento ou ideia digna de nota (sendo, neste caso, a falta de mérito imediatamente associada à qualificação de anónimo). A inversão desta lógica, que corresponderia à averiguação prévia da qualidade das ideias e da exposição de quem escreve sem se identificar antes de desvalorizar a escrita por ser escrita de gente anónima, começa a ser tarefa difícil. Falo, claro, de uma coisa bem simples: de preconceito, de pré-juízo.

O anonimato é apenas um dos diversos instrumentos que gente sem carácter pode utilizar para prejudicar terceiros, dependendo da sua capacidade criativa; não é o acto condenável em si mesmo. Geralmente está associado à covardia, à deslealdade e à pusilanimidade, qualidades essas que quem usa o anonimato para agredir outrém deve, seguramente, mostrar diariamente a todos os que lhe conhecem a cara e a identidade.

Mais haveria a dizer sobre isto: poderíamos, por exemplo, indagar até que ponto um anónimo (ou alguns designados anónimos, aliás), na semântica do establishment blogosférico, não é mais do que um desconhecido (como bem nota o Francisco José Viegas aqui). Eu, por exemplo, cidadã desconhecida de cerca de nove milhões de portugueses: que diferença faz eu assinar o que aqui escrevo como lolita ou com o meu nome verdadeiro? A mim, faz muita. A quem lê o que escrevo e não me conhece, nenhuma.

O Caderno

Sou eu que vou seguir você
Do primeiro rabisco até o be-a-bá.
Em todos os desenhos coloridos vou estar:
A casa, a montanha, duas nuvens no céu
E um sol a sorrir no papel.

Sou eu que vou ser seu colega,
Seus problemas ajudar a resolver.
Te acompanhar nas provas bimestrais. Você vai ver.
Serei de você confidente fiel,
Se seu pranto molhar meu papel.

Sou eu que vou ser seu amigo,
Vou lhe dar abrigo, se você quiser.
Quando surgirem seus primeiros raios de mulher
A vida se abrirá num feroz carrossel
E você vai rasgar meu papel.

O que está escrito em mim
Comigo ficará guardado, se lhe dá prazer.
A vida segue sempre em frente, o que se há de fazer.

Só peço a você um favor, se puder:
Não me esqueça num canto qualquer.

Toquinho e Chico Buarque

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