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17.11.06

O direito a ser deixado só

Numa entrevista à TSF (que me reteve hoje, imagine-se, dentro do carro, já estacionado, até acabar), Luisa Neto (professora auxiliar da faculdade de Direito da Universidade do Porto) falou de uma concepção inovadora do corpo como um bem (coisa, no Direito), portanto susceptível de ser objecto de um direito fundamental. A questão prende-se com o grau de disponibilidade dos direitos fundamentais cujo exercício é restringido, segundo Luisa Neto, em consequência de concepções simbólicas castradoras do conteúdo do direito. Exemplificou com a licitude de um corte de cabelo, por contraponto ao suicídio assistido, este moral e juridicamente censurável. O corpo humano será, neste sentido, livremente disponível pelo indíviduo titular do direito.

Desta construção jurídica extraem-se ilações curiosas: por exemplo, a de que este direito fundamental, assim concebido, legitima que o indivíduo renuncie a viver e escolha suicidar-se. Ou a de que é irrecusavelmente legítimo reclamar um direito absoluto à privacidade, inviolável e interdito a ingerências sociais ou, em geral, públicas - aspecto este que, aliás, ganhou actualidade inédita com a implementação de meios de controlo de circulação de pessoas após o 11 de Setembro. E aqui, no quintal blogosférico, bem mais comezinho e pitoresco, a propósito do direito ao anonimato (ou, se se quiser ver na perspectiva dos detractores, do dever de identificar o autor das acções).

Nos Estados Unidos está desde o século dezanove consolidada (e constitucionalmente consagrada - quem diria, ou melhor: eu não diria) a ideia da esfera de privacidade de cada indivíduo como um valor supremo: o designado "right to be left alone", ao qual os partidários do aborto americanos foram encontrar o fundamento do direito a não procriar (que eticamente tem validade equivalente ao direito a procriar). Note-se que tudo isto acaba de vez com o argumento confrangedor e, talvez, já obsoleto do "direito à barriga" para sustentar a ideia da despenalização do aborto. Como é evidente, esse pretenso direito a uma dada barriga é bem pequenino, comparado com esta recolocação civilizacional dos direitos individuais. Esse direito a não procriar, de conteúdo amplo e, exceptuando as sociedades mais funcionalizadas à procriação (que em geral coincidem com as sociedades mais tributárias das doutrinas católicas), irrecusável, é justamente o aspecto mais decisivo que dá fundamento ético ao aborto. É uma construção americana, mas é da "boa américa" (sim, sou anti-americanista ao ponto de admitir excepções).

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