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31.1.09

Um boi: o requiem

Demorou-se pouco mais de um mês.
Quase de repente, dum dia para o outro, deu-me a razão que eu, meu Deus, bem dispensava.
Na véspera deambulava ele com a mulher, no corredor, ambos de braço dado, sorridentes, "estou fino, dê-me alta". Não dei, nem sei porquê. "Amanhã, amigo, namora agora que eu amanhã dou-ta".
Já não lha dei.
Estas coisas explicam-se com outras palavras mais exactas, sei o que sucedeu, sei mesmo o que poderia ter-me acontecido se lhe tivesse dado alta e a cascata das incidências posteriores a ela se tivesse despenhado em casa dele, mas não há palavras melhores que aquelas que descrevem os factos sem os embelezarem da ciência inútil dos cultos interpretativos.
Deixou de conseguir engolir, as pálpebras caíram-lhe, ficou a ver a duplicar, em horas - mesmo com a cortisona - deixou de conseguir virar os olhos para onde eu lhe pedia, ficou incapaz de encolher os ombros, logo a seguir mexia menos dum dos lados, já mal se percebia o que dizia, aceitou a sonda nasogástrica e a minha explicação de que, parecendo tudo bem no exame feito ("o TAC"), se lhe ia fazer um outro ("a ressonância"), que ia ficar melhor, "olha, amigo, se te tenho deixado ir ontem?, já viste?", ele ainda sorria num esgar estranho e apertou-me a mão e eu disse-lhe que íamos ter de ajustar contas brevemente, vários Sportings-Portos aí vêm, "vais pagar aquilo da Taça", ele ainda tentou encolher os ombros, já não podia, como quem me dissesse, como tantas vezes me dissera antes, "lagarto é feito para perder ao sol", portista ferrenho, e eu saí dali para fora, que já a noite era de chuva longa e nevoenta e tinha fome.
Parou de respirar na madrugada seguinte, ainda o coração lhe batia bem. Depois também se lhe cansou o coração e deixou-o, finalmente, ir-se. Isto foi pouco tempo antes de eu chegar, às oito horas, ainda falei com a gente das paragens, que vinha dele cansada e derrotada dele, de maneira que entrei na manhã sabendo logo tudo, quase tudo o que suspeitara de véspera era verdade, de maneira que a comecei assim, à manhã de anteontem, a encolher os ombros - que eu isso podia, ele é que não, já desde a véspera - e fui esconder-me a dizer caralhadas murchas e a chorar por mim, para onde não me vissem, porque sei desde cedo que um médico se quer sempre composto aos olhos de quem o observa e só ele é que já não podia observar-me.

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