blog caliente.

5.12.03

Os Miseráveis de Maio.

Vou mudar-lhes os nomes, mas nem seria preciso. Ninguém os reconheceria pelo que vou contar.

O Martinho tinha 42 anos e era um antigo polícia. Compulsivamente reformado, depois de lhe ter sido apurada culpa na morte de outro homem, anos atrás. Ainda alegou legítima defesa, o assaltante que tentava dominar ameaçara-o. Mas a Justiça decidiu que dois tiros fatais, desfechados por Martinho na cabeça do outro, mais pareciam ataque deliberado. O falecido apontara-lhe arma branca ... e a dois passos...
Martinho, aliás, já perto do fim, acabou por me contar tudo. Quando as nossas conversas eram mais frequentes, prolongadas e íntimas. Por causa do seu sofrimento e do meu. Maior o dele, porque estava a morrer, lentamente, o mais leve e lentamente que eu podia, dum cancro no estômago. E eu, mero comparsa, não estava. Contou-me que matara o outro porque tivera medo. E concordava que medo nenhum desculpa a morte de ninguém. E vivia com aquela culpa, havia anos, secando-se por dentro.

Quando soube da doença que tinha, dos tratamentos desgastantes (para mim esperançosos) que iria suportar, julgo que se apercebeu da sua condição de homem a prazo. Somos todos homens e mulheres a prazo, mas ele entendeu, fino Martinho, que o seu era curto. E pareceu-me encarar, desde cedo, a proximidade da morte como um acto de justiça, a punição que lhe faltava para acabar com a culpa e sossegar.
A história do Martinho é mais longa, muito mais bonita do que isto. Mas não cabe aqui, sossega na minha memória, na dos amigos dele, na da família. Enquanto pudermos lembrá-la sossegadamente, como eu faço hoje.
Na madrugada em que o Martinho morreu eu estava de serviço. Coincidência de sofrimentos, o dele infinitamente maior...

É aqui que se impõe falar do Gaspar.
Uma morte angustiada é uma morte angustiante. Impõe perfusões de morfina, que são o bálsamo para ambas as dores, da alma e do corpo, legítimo lenitivo para quem não pode mais. Doses correctas, que esta história é triste mas nunca perdeu beleza!
O Gaspar, meu colega, apercebeu-se do meu drama logo que entendeu o do Martinho. Ficou comigo, ajudou-me na colocação do catéter e na regulação da bomba perfusora e, depois, sossegou-me a vigília. Vigília abençoada: como se uma calma doirada viesse da noite cálida de Maio, ninguém mais precisou da Medicina Interna naquela madrugada. Ficámos ali, falando de tudo e de nada, entre os silêncios. O Martinho dormia, respirando placidamente. Calmando-nos os músculos tensos e doridos. A conversa deslizou para coisas bonitas e o Gaspar, homem sensível, levantou-se, dizendo “venho já”. Quando regressou, trazia-me um presente, com um bilhete que me arrependo de não ter guardado. Rasguei o embrulho, com calma. Era música. O duplo CD dos Miseráveis, que eu não tinha e que o Gaspar, sabendo que eu gostava, havia já muito tempo, comprara para me oferecer um dia. Um dia em que viesse a propósito.
Veio a propósito naquela madrugada, que se estendeu até hoje, atenuada mas sempre viva. Sobretudo quando avivada pela necessidade de a contar.

O Martinho morreu às cinco e meia daquele dia de Maio, tornando a noite mais leve e clara. Como se tivesse decidido antecipar a aurora, no seu clarão de morte.
Nunca mais pude escutar as belas canções do Gavroche, da Cosette, do Marius e do Valjean sem ressuscitar o Martinho, na sua (finalmente) calma despedida. E sem chorar calado. Suponho que se passa o mesmo com o Gaspar , mas nunca mais falámos disso. Como se ambos soubéssemos, em silêncio, que tem de ser assim.

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