blog caliente.

4.12.03

A missa

Intriga-me uma certa moral sectária que se arroga no direito de decidir, através de critérios de miserabilismo e de exclusão social, a que mulheres devia ser legitimado o direito de praticar o aborto, como se fosse possível fixar uma linha de fronteira entre as mulheres que merecem a compreensão alheia por razões sociais e económicas relevantes (sendo certo que seria necessário definir, também, o que se entende por razões sociais e económicas relevantes) e as mulheres que vivem desafogadamente e que estão, portanto, na posse de todos os recursos suficientes para impedir uma gravidez indesejada, sendo que apenas as primeiras estariam legitimadas a praticar o aborto. Como se a responsabilização do Estado relativamente aos comportamentos individuais dos cidadãos (e a culpa, na sua dimensão moral) fosse, ou devesse ser (o que é ainda mais estranho), proporcional ao estatuto económico-social. Como se fosse possível distinguir os comportamentos penalmente censuráveis dos não censuráveis pelo grau de acesso aos recursos económicos ou, mais explicitamente, aos programas de planeamento familiar e aos anti-concepcionais. Afirmar que uma tia de Cascais ou uma adolescente violada têm, possivelmente, menos direito a praticar o aborto do que outras mulheres socialmente menos favorecidas não é mais do que defender o arbí­trio moral, talvez despótico, que legitimaria o Estado a casuisticamente definir quem poderia praticar o aborto sem censura penal e quem não o poderia por não apresentar uma justificação menos fútil do que uma noite passada no bas-fond da movida lisboeta. Não tenho simpatia especial por quem, em geral, actua com ligeireza e indiferença em relação às consequências que os próprios comportamentos causem a si ou a terceiros (mesmo embrionários). Mas intrigam-me as pseudo-doutrinas morais aplicadas à defesa da criminalização do aborto, como se se pudesse aprioristicamente definir estatutos morais ou sociais merecedores da solidariedade social e, em consequência, do sancionamento legal. Por mais que pense no assunto, não saio disto: a decisão sobre a prática de um aborto não pode ser participada. É sempre, ou devia ser, individual, porque a ela corresponde a um direito próprio, natural, precedente à lei ou aos costumes. Não é atribuído por decreto; já reprimido, pode ser.

Tudo isto porque estive a ler a missa, que até me agradou. Em parte, está visto.

View blog authority