A baba e os olhos
O interno passou pelo meio das macas, cada uma delas com um corpo em cima, que atafulhavam a saleta de triagem-homens. Havia várias, e algumas estavam oblíquas, tocando-se por vértices.Para chegar aonde precisava, teve de desviar algumas. Ao desviar uma, tocou num corpo, que logo ameaçou despenhar-se dela abaixo, resfolegando. O interno, à força de antebraços, recolocou na maca o corpo que lá estava e reparou, ao fazer isso, que se tratava ali dum corpo jovem e bastante vivo, que se babava bastante. E esse corpo tentou limpar a baba à bata do interno, enquanto babujava um gemebundo e irascível "fodo-te!".
O interno repeliu as beiças do baboso com um puxão gentil na bata e seguiu para onde ia. Caminho pequeno, até à mesa das análises, que tentou ler mantendo-se de costas para o caminho, porque lhe tinha sido penosa a caminhada e pouco bela.
Sentindo restolhada atrás de si, logo depois, o interno virou-se de repente, naquela coisa premonitória que por vezes temos de que "isto é comigo".
E era.
Vinha o baboso, já de pé e babando-se mais, de ferro em riste, era um daqueles suportes para soros, dos antigos, que eram de ferro, levantado e já a pontos de se baixar nas costas do interno.
Vários dos corpos antigamente inertes no cimo das macas se tinham erguido, perante a restolhada, bradando alertas que eram mais para dentro que para fora. "Debandar!". Tanto que se levantaram e sairam, lestos, bastante menos mal de si do que o interno pensara que estivessem.
E o baboso ali, traidamente em pé, subitamente indeciso, fitando agora olhos que o olhavam, em lugar de fitar as costas fáceis que o motivaram às melhoras do levante e da ferrugem.
Mas, uma vez de pé, os babosos fogem - depois de hesitarem, como quase toda a gente, independentemente da baba que emitem e do lugar do corpo onde ela lhes chega - para a frente. E, berrando já, no desespero do desmascaramento, fez menção de desfechar o golpe que hesitara e que se lhe impôs de novo, porque tinha de se cumprir na baba inteira.
O interno, que tivera já tempo para o medo e que sentia agora raiva surda, agarrou-lhe o ferro, com ambas as mãos, e sentiu que o ferro se torcia. Mas não, o ferro é rijo, era apenas o baboso que se afrouxava todo, novamente, agora na moleza do imprevisto, e que desejava regressar à maca, às arrecuas. O que não conseguiu, porque o interno o transportou, ambos de pé e agarrados ao ferro, como gémeos que se defrontassem naquele ódio fraterno de se compreenderem e se detestarem pelo mútuo entendimento que preside aos confrontos tristes, até à parede, até o baboso se encontrar com ela e se lhe encostar, altura em que decidiu não permanecer mais de pé, escorrendo-se por ele inteiro e pelo muro abaixo, babando-se sempre, até ficar de cócoras, sempre agarrado ao ferro mas não fazendo força, desviando dos do interno os olhos que neles mantivera fixos enquanto recuava, desatando a gemer de novo, já doente outra vez, e depois berrando que lhe batiam, "eu fodo-te! queres-me bater! acudam!", o que era falso, como falsas eram já, como se provou nas entrelinhas da memória que agora consultei, mais de metade das coisas que ali se estavam a passar desde antes, muito antes, mesmo antes de o baboso se levantar, babando sempre, da baba inerte em que ali estava antes afogado, náufrago de jangada frouxa que estrebuchava mal no mar manso que agitara.
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