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1.11.06

Notas sobre o anonimato por uma desconhecida

Toda a gente discute o anonimato nos blogues a propósito das acusações de plágio dirigidas a Miguel Sousa Tavares que, como se sabe, foram publicitadas num blogue e com a cobertura protectora do anonimato. Mas ninguém se lembra, por exemplo, que este tipo de acusações são incontornavelmente torpes (ainda que intrinsecamente sejam justas) se forem, como foram, feitas em praça pública, e portanto mais com o propósito de engrandecer a polémica do que o de fazer justiça aos plagiados. O blogue (depositário público do laudo acusatório) foi apenas o meio utilizado - não é nem fundamenta essa torpeza. Tivessem os acusadores publicado as mesmíssimas acusações num jornal de grande tiragem e assinassem por baixo, com identificação exaustiva e endereço para contactos, e ainda assim a acusação seria torpe. Porque, para ser justa, teria sido dirigida ao MST pelos próprios plagiados e discutida e dirimida numa instância de resolução de conflitos própria de um estado de direito - e não através do lançamento das achas em chamas à populaça, para que esta condene ou absolva, respectivamente segundo o critério da intransigência pseudo-moralista e da idolatria histérica.

Com muita ligeireza e com uma boa dose de superioridade moral, toda a gente aponta o dedo ao anonimato, declarando-o fonte decisiva de descredibilização da blogosfera. Qualifica-se e condena-se moralmente a escrita anónima, mesmo a que seja anódina, inócua ou simplesmente banal, através da presunção inilidível de que quem escreve sem assinar esconde a sua identidade com o simples propósito de não assumir qualquer responsabilidade pelo que escreve e pelas consequências do que escreve. Na melhor das hipóteses, atribui-se o anonimato a uma espécie de fraqueza de espírito do autor, que lhe reprime a coragem de escrever com autoria identificada.

Neste ponto, entronquemos a discussão do anonimato com a da privacidade, tema que, nos últimos dias, também serviu para diversas declarações apologéticas da separação do público e do privado e condenatórias da instrumentalização do privado em função do público. Sendo, penso eu, indiscutível esse direito à reserva dos dados pessoais (quer tratando-se de figuras públicas quer de cidadãos sem qualquer notoriedade de massas), é importante que se tenha presente, no contexto da discussão do anonimato, que qualquer cidadão é titular de um direito inviolável à reserva da sua privacidade, que integra o direito à reserva da sua identidade sempre que o modo de acção não implique a necessidade da sua identificação. Por outras palavras, sempre que a sua acção valha por si mesma, sem que esteja condicionada pela identidade do sujeito que a pratica. É este o conteúdo positivo do direito ao anonimato.

Na delimitação negativa do direito, o indivíduo que pretende manter-se socialmente anónimo (sendo as razões dessa reserva do foro pessoal e, portanto, divulgáveis apenas na medida da sua vontade e, na mesma medida, insindicáveis por terceiros) deve exercer esse direito com respeito pelas regras éticas das relações sociais. As que impõem, designadamente, que qualquer acusação seja fundamentada e, na mesma medida, contraditada pelo acusado, o que pressupõe o conhecimento (ou a cognoscibilidade) do autor da acusação (entre parentesis, não resisto a fazer notar que, curiosamente, o Estado desrespeita esta regra ao admitir a possibilidade de qualquer cidadão denunciar anonimamente uma dada situação alegadamente ilícita às entidades fiscalizadoras e policiais) e a sua consequente censura e penalização, caso se demonstre que a acusação é, afinal, falsa ou difamatória.

De forma pacífica e quase sem reacção, tem-se instalado a ideia de que o anonimato se presume condenável e, portanto, passível de desclassificação moral do autor. Consolida-se o princípio segundo o qual um autor anónimo é um autor de segunda categoria, ainda que escreva com génio semelhante a Shakespeare ou Cervantes (sendo, neste caso, apontada a falha como um senão) ou ainda que escreva execravelmente e sem qualquer talento ou ideia digna de nota (sendo, neste caso, a falta de mérito imediatamente associada à qualificação de anónimo). A inversão desta lógica, que corresponderia à averiguação prévia da qualidade das ideias e da exposição de quem escreve sem se identificar antes de desvalorizar a escrita por ser escrita de gente anónima, começa a ser tarefa difícil. Falo, claro, de uma coisa bem simples: de preconceito, de pré-juízo.

O anonimato é apenas um dos diversos instrumentos que gente sem carácter pode utilizar para prejudicar terceiros, dependendo da sua capacidade criativa; não é o acto condenável em si mesmo. Geralmente está associado à covardia, à deslealdade e à pusilanimidade, qualidades essas que quem usa o anonimato para agredir outrém deve, seguramente, mostrar diariamente a todos os que lhe conhecem a cara e a identidade.

Mais haveria a dizer sobre isto: poderíamos, por exemplo, indagar até que ponto um anónimo (ou alguns designados anónimos, aliás), na semântica do establishment blogosférico, não é mais do que um desconhecido (como bem nota o Francisco José Viegas aqui). Eu, por exemplo, cidadã desconhecida de cerca de nove milhões de portugueses: que diferença faz eu assinar o que aqui escrevo como lolita ou com o meu nome verdadeiro? A mim, faz muita. A quem lê o que escrevo e não me conhece, nenhuma.

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