Fernando
Teve uma dor de cabeça muito forte, que ainda confessou. Muito forte, como nunca tinha tido.
Teve longos minutos de medo, suponho eu daqui, que a morfina não amacia todas as surpresas, nem todas as dores.
Depois, o sangue que lhe inundava o cérebro fez-lhe o que faltava.
Enterraram-no hoje e eu não fui. Nunca vou.
Um dia vou.
Esguichos de besugo
Sendo verdade que daria muito jeito ao Sporting que o Guimarães perdesse amanhã - naquela cidade azeiteira deles, uma que fica quase ao pé de Fafe - contra o Porto, não deixa de ser uma verdade ainda mais forçosa que dará um jeito ainda maior ao Sporting conseguir ganhar esse jogo épico que lhe cabe encarar, amanhã também, contra o Marâitme diú Fiunchèl. E, depois, noutra semana, essoutro desafio histórico contra o Paços de Ferreira, que é uma carpintaria ali perto de Freamunde, onde se joga à bola com um tecto salarial de 3000 euros. E, por fim, esse clássico contra o Boavista, que é no Porto - mas que se joga em Alvalade, que devia ser em Gaia em lugar de ser onde é.
Isso é que éreis lindos, ó paneleirinhos da merda: ganháveis esses 3 jogos e depois via-se. Não era? Era. Queques da merda.
Ganhar esses jogos não é fácil? Pois não, eu sei, vós andais a levar 4 de Leirias, levais no lombo gordo de clubes com 177 adeptos! Claro que não é fácil! Aliás, deixai que vos diga, para vós, ó substantivo colectivo Sporting da minha alma que já me enervais de caralho há muitos anos, nada vos resulta fácil se não passar pelo cabeleireiro, pelas putas ou pela boutique.
Não caiais, ao menos, é nesta artimanha de burrice saloia que se anda aí a apregoar em surdina: que nunca vos passe pela cabeça fraca chatear o Porto (e aqui podia ser o Benfica, ou o Boavista, ou o Setúbal, mas calha agora ser o Porto) por ir jogar ali, ao pé de Fafe, com metade dos suplentes armados em titulares. Mais: que não vos passe pela cabeça "drunfada de cagança" macular o resultado do Porto amanhã, ali perto de Fafe, mesmo que o Lisandro se deite no chão em lugar de marcar um golo fácil. Sabeis por quê? Porque já não tendes idade para andar ao colo de ninguém. Ide mamar num jerico, se quereis mama!
Ganhai mas é aos merdosos da Madeira, ide ganhar aos desgraçados de Paços de Freamunde, vencei os tipos do Boavista.
Já que nem sequer fostes capazes de ganhar mais do que 1 ponto (em 6) aos desgraçados de Leiria, fazei o que vos digo, tende vergonha, e dai graças a Deus por ainda andardes aí sem uma coça dura aplicada nesses lombos sebosos de moleques pimba, que é o que sois até me provardes o contrário.
a gente encontra-se
Agora eu era o herói
e o meu cavalo só falava inglês
a noiva do
caubóiera você, além das outras três
nem em lugar nenhum
Foi-se ontem, a Rosa. Morreu como um passarinho, disseram-me ao telefone. Não sei bem como é, mas se for como quando eu era canalha e andava às chumbadas aos pardais, morrer como um passarinho deve ser uma espécie de agitar de asas breve, um pio mudo, antes de cair num baquezinho surdo.
E foi-se hoje embora a Graça. Também como um passarinho, dirão. Mas não. Foi pior que isso, foi menos campestre, sentiu a falta de ar. Sentiu o cheiro do estrume mais inútil, o do fim: aduba o quê, o estrume do fim? nada, só a pena e o cheiro dela. Pena de pássaro, pena de penar, cheiro da pena.
E está para breve o Fernando. Anda para breve há três semanas, complicações de sangue e de falta de milagres.
São os três de que me lembro de repente. Isto é penoso.
Isto já não me serve de nada, escrever aqui.
Sem cuecas
Todos os dias me telefonam de empresas com nomes esquisitos, inglesados, querendo fazer-me breves questionários sobre drogas que uso no cancro.
Há mesmo uma Susan "qualquer coisa" que diz falar de Londres, com sotaque de Chelas.
O que querem de mim é saber se os delegados de informação médica a quem pagam "o pão que o diabo amassou" me passam a informação pretendida, da forma desejada. E, já agora, se eu a engulo assim, crua.
Sei isto pelos próprios delegados, desesperados, suando cada vez mais todos os dias, que me pedem - mesmo - para decorar frases. Coitados. Não têm culpa. Eu não decoro.
Descobri a forma correcta de lidar com estes novos pides do marketing.
- Não, é engano, eu não sou o doutor besugo, sou o Pires da padaria. Pra que era?
- Sim, sou o doutor besugo, mas agora não posso, estou a operar um tip... foda-se, agora não posso, cabrão, lá se foi o caralho da válvula, tu e a tua empresa vão pagá-las, meu filhadaputa!
- Ligue-me de noite para este número, dá-me mais jeito. Sim, para este. Se vou estar cá? Não, por isso mesmo.
O interesse público
"As the ordinary notions of equity and morality no longer suffice to explain and justify all the innovations daily begotten by a revolution, the principle of public utility is called in, the doctrine of political necessity is conjured up, and men accustom themselves to sacrifice private interests without scruple and to trample on the rights of individuals in order more speedily to accomplish any public purpose."
Alexis de Tocqueville, Da Democracia na América, 1832
"setiquinhentos"
A um tipo qualquer que pede esmola pode-se dar-lhe tudo o que se tem nos bolsos, pode-se dar-lhe apenas o trocado que tilinta, pode-se dar-lhe um gordíssimo discurso baseado em Darwin, aquela demissão pedagógica do “eu ensino-te a pescar; agora peixes, meu amigo, lamento muito, que eu até tenho aqui cinquenta e oito peixes frescos, não te dou nenhum”, pode-se dar-lhe o desprezo das costas que se lhe voltam, isto se o pedinte não for agressivo - e a agressividade é uma doença rara nos pedintes.
Pode-se tudo, podem fazer-se ainda mais coisas a quem pede. Pode, mesmo, dar-se-lhe um charuto bom. Eu sei que sim. Faz rir senhoras, geralmente. Algumas.
A um tipo que pede esmola pode fazer-se quase tudo. Menos fazer-lhe de conta que não pede.
Faça-se o que se fizer ao pedinte, ainda se pode, depois, arengar à mesa, à hora dos torresmos, sobre racionalismos e outras variantes do “fizeste bem, fizeste mal”. Isto até chegar a bebedeira coloquial, aquela que faz chorar ou rir, conforme o grau, a insistência e o grau da insistência.
Dissecar intelectualmente o sofrimento é despi-lo da víscera que o gera e da víscera que o sente.
Eu sei alguma coisa disto. Há mesmo quem diga que há sofrimentos obscenos, ofensivos. Quando, à mesa dos torresmos, chega o momento de compararmos sofrimentos, o dos convivas é sempre menor que o nosso. Chega a ofender o nosso.
Como se apenas as nossas razões para sofrer fossem as boas. Como se mais ninguém pudesse chorar o nosso sofrimento. Como se os outros pudessem apenas chorá-lo pelos nossos motivos e com menos lágrimas.
Como se não se pudesse chorar de maneiras diferentes pela mesma coisa.
Quanto ao pedinte, a verdade é que o tipo estava apenas a pedir. Embora, na mesa dos torresmos, o derrame cortical atordoado e colectivo sintetize, geralmente, já de olhos erráticos, que "essa corja está mais a pedi-las que a pedir".
da óptica funda
Reparei sempre nele, tem exactamente a minha idade, reparei nele desde o início, já passou quase um ano: olhos de medo controlado, um medo palrador.
E na mulher também, reparei mais tarde, que ele primeiro vinha só: olhos de tristeza segura, muda.
E na filha, que vinha menos, mas vinha quase sempre: olhos que não sei dizer bem. Reparei menos.
Não é muito frequente isto: olham-me nos olhos, sempre me olharam, não estou assim habituado. Gosto. Mas não sei, até, se dura este gostar.
Entreolham-se muito e sempre se entreolharam. Muitas vezes sem falar, quando estou eu. Têm, certamente, no seu pudor da exposição, os seus códigos de mudez.
Piorou. E os olhos dele, agora, são ainda de medo, sim, mas é já um medo quase sem controle. E os da mulher são olhos de tristeza, como sempre, mas adquiriram uma frialdade quente, uma cova de dor funda, quase uma montanha, quase como a dele, "dor de parceira", suponho. E os da filha ainda não os revi bem, ainda não veio, deixemo-la sossegada para já, mas serão olhos de mistura.
Ele e ela, ela e ele, agora já só quase feitos de medos e silêncios, ainda me olham no fundo dos olhos, a ver se me vêem neles. Mas ainda não me vêem, não podem, não deixo ainda: eu ainda não sei.
Reparei que continuam a entreolhar-se muito, no fundo dos olhos um do outro, como se estivessem de olhos dados.
4-2, com a sorte do jogo, mas é jogo
O que é que me faz gostar do Liverpool? De Liverpool, que nem conheço?
É isto, escutar cânticos feitos de palvaras antigas encimando portões.
Saber que Crouch se pode dizer "Crutch" e não "Crautch". E que se diz "râgbi" e não "reiguebi".
Isto, em clima de conflito (os rapazes, logo abaixo do Manchester - diz-se mesmo assim, "Manchèstâa" - preferem Clichi, Flamini, Fabregas - dizem Fabregàz - e Adébayor a Gerrard - diz-se Djeráar), faz relativamente bem.
O Sousa e os anósmicos
Sousa, que se cuidava um futuro e promissor ponta esquerda, era apenas um interior esquerdo polivalente da vida. Daqueles que não servem para a ponta esquerda, lento Sousa, corpo pesadão e sem nervo, mas que se ajeitam sempre se for "um bocadinho por dentro".
Nem sequer era ambidextro: olhando-o sem ele notar, era mais ambivalente, calçado nas botas cambadas por outro. E muito pouco "sinistro".
Um dia, na sua polivalência ambiciosa, deu por si a jogar na ponta direita.
Sousa, que era polivalente - mas interior esquerdo de raiz -, não achou estranho. "O treinador é que sabe", o treinador disse-lhe "entra" e ele entrou. "Antes ser convocado que estar no banco", pensou Sousa, cuidando-se seguro.
Adaptou-se mais ou menos bem, o Sousa, à ponta direita. Estrebuchou pouco. Está no topo da sua carreira - ele não sabe que já está - e pensa que, se se aplicar na ponta direita, lentamente, talvez ainda vá poder jogar a interior direito, um dia destes, e sossegar a culpa de manter, na ficha, ainda e sempre, "Sousa: interior esquerdo".
Mas não vai sossegá-la. À culpa. Vê-se da bancada a polivalência, mais mental que física, de Sousa.
E a polivalência mental, essa qualidade inqualificável, nem ganha campeonatos nem amigos com olfacto para mentes tão suadas e com tanta falta de sabão.
Para Sousa, serve assim. Desde que seja titular, joga onde lhe pedir o diabo. Mas cheira sempre a enxofre.