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12.4.08

"setiquinhentos"

A um tipo qualquer que pede esmola pode-se dar-lhe tudo o que se tem nos bolsos, pode-se dar-lhe apenas o trocado que tilinta, pode-se dar-lhe um gordíssimo discurso baseado em Darwin, aquela demissão pedagógica do “eu ensino-te a pescar; agora peixes, meu amigo, lamento muito, que eu até tenho aqui cinquenta e oito peixes frescos, não te dou nenhum”, pode-se dar-lhe o desprezo das costas que se lhe voltam, isto se o pedinte não for agressivo - e a agressividade é uma doença rara nos pedintes.
Pode-se tudo, podem fazer-se ainda mais coisas a quem pede. Pode, mesmo, dar-se-lhe um charuto bom. Eu sei que sim. Faz rir senhoras, geralmente. Algumas.
A um tipo que pede esmola pode fazer-se quase tudo. Menos fazer-lhe de conta que não pede.
Faça-se o que se fizer ao pedinte, ainda se pode, depois, arengar à mesa, à hora dos torresmos, sobre racionalismos e outras variantes do “fizeste bem, fizeste mal”. Isto até chegar a bebedeira coloquial, aquela que faz chorar ou rir, conforme o grau, a insistência e o grau da insistência.
Dissecar intelectualmente o sofrimento é despi-lo da víscera que o gera e da víscera que o sente.
Eu sei alguma coisa disto. Há mesmo quem diga que há sofrimentos obscenos, ofensivos. Quando, à mesa dos torresmos, chega o momento de compararmos sofrimentos, o dos convivas é sempre menor que o nosso. Chega a ofender o nosso.
Como se apenas as nossas razões para sofrer fossem as boas. Como se mais ninguém pudesse chorar o nosso sofrimento. Como se os outros pudessem apenas chorá-lo pelos nossos motivos e com menos lágrimas.
Como se não se pudesse chorar de maneiras diferentes pela mesma coisa.
Quanto ao pedinte, a verdade é que o tipo estava apenas a pedir. Embora, na mesa dos torresmos, o derrame cortical atordoado e colectivo sintetize, geralmente, já de olhos erráticos, que "essa corja está mais a pedi-las que a pedir".

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