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30.3.05

Falta de luz - 1

Manuel e Jorge, ambos médicos, criaram uma empresa de prestação de cuidados. Atendem nas suas próprias instalações e, quando é o caso, vão ao domicílio.
Como trabalham, adicionalmente (cumprindo escrupulosamente as suas obrigações), no SNS, a sua empresa funciona, apenas, em horário pós-laboral.
Passam recibos dos honorários recebidos, são minuciosos na declaração dos seus rendimentos, não fogem aos impostos. Tudo duma limpidez calma.

Há dias, Manuel foi chamado a observar um doente. Antero.
Antero tinha tosse, expectoração e febre. E 75 anos.
Manuel viu, bem, Antero, prescrevendo antibiótico, xarope e “qualquer coisa para a febre”. E muitos líquidos. Pagaram-lhe doze justos contos. Manuel passou recibo, que Antero poderá “amortizar” no seu IRS. Manuel, por seu turno, anotou cuidosamente essa receita obtida, fruto do seu trabalho legítimo, para a submeter a futuros e próprios descontos. Manuel é um cidadão exemplar.

Três dias depois, Manuel foi, de novo, chamado a ver Antero. Não que Antero estivesse pior. Mas melhor não estava. Manuel observou Antero, uma vez mais, minuciosamente. E achou, após sumária e cuidadosa análise, que Antero deveria fazer uma radiografia. Levou apenas 8 contos, porque se tratava, ali, duma segunda consulta. Fez carta, dirigida ao hospital público da área, dirigida ao “digníssimo colega de medicina interna”, solicitando “avaliação e actuação conforme a praxis”.

Antero foi, portanto, ao hospital, munido de doença e carta. Fez uma radiografia e análises. E gasometria arterial. Teve alta, após confirmação de pneumonia adquirida na comunidade, sem insuficiência respiratória. Abastecido de receita alterando-lhe o antibiótico (não por erro no primeiro fármaco prescrito, mas porque assim aconselhava a evolução do seu quadro clínico), pagou a taxa moderadora, mais o resto. Ao todo, cerca de dois contos e quinhentos.

Está certo.
Mesmo o simples facto de Antero ter desembolsado, em três dias, vinte e dois contos e quinhentos, distribuídos da maneira que entendeu mais adequada, está correcto. Foi Antero que escolheu assim. E a liberdade de escolha não se discute, uma vez que é, por definição, livre.


Poderia a coisa ter-se passado, contudo, com Antero, diferentemente. Antero poderia ter ido, logo da primeira vez, quando se sentiu doente, ao hospital. Ou, mesmo da segunda, já com carta “solicitando os melhores cuidados”. Isto é, já depois de ter pago, a Manuel, doze contos por serviços e oito por carta educada.

Duma forma ou doutra, tudo poderia ter sido diferente.
Suponhamos que Antero, em vez de pneumonia adquirida na comunidade, sem insuficiência respiratória, detinha em si pneumonia extensa, radiologicamente pouco típica, com hipoxemia grave. E, eventualmente, tinha ali, Antero, enfeitando-o, assustador derrame pleural.
Aliviado Antero, por toracocentese que revelaria (por que não?) um exsudado, poderia Antero necessitar, além dos cuidados devidos, duma TC torácica para esclarecer o quadro. E duma BFO, por hipótese, para despiste duma neoplasia, por exemplo. Vamos supor que, por absurdo, depois da TC e da BFO, do mais que fosse, por haver coisa mais fina a esclarecer em Antero, era forçoso que lhe fosse feita uma RMN.
Aqui, calmaria. A RMN teria de ser realizada fora do Hospital. Que, por falta de meios públicos, o público recorre, também, a privadas possibilidades.

O Hospital pagaria, obviamente, como costuma suceder (por exemplo), à empresa de Carlos e Eleutério, que tem aparelhagem própria, a realização do exame. Carlos e Eleutério passariam honestos recibos ao Hospital, pelos serviços prestados. E o Hospital pagaria, evidentemente, a Carlos e Eleutério, os óbvios emolumentos.

Tudo certo. Aqui aprende-se, mesmo que se não perceba tudo, que a economia é uma ciência pouco acessível a besugos. Para já, aprende-se isto:

1 - Quando uma empresa privada carece, para um seu doente, de recorrer a público serviço, basta-lhe remeter o doente, com carta polida solicitando “os melhores cuidados e sofisticação”, agradecendo graciosamente e, de forma elegante, assinando.
2 - Quando um serviço público remete doente a empresa privada, solicitando “os melhores cuidados e sofisticação”, além da carta (e dos agradecimentos) segue, invariavelmente, cheque. Assinado.

Isto deve estar, evidentemente correcto. Há aqui qualquer coisa que me escapa. Deve ser, como é meu costume, o meu apedrejável vício de comparar alhos e bogalhos.
Tenho de tentar ver isto com outras lentes, menos foscas, a ver se vejo mais luz. Vou tentar.

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