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26.3.05

Grelos e nabiças

Bom, tem-se falado com pouca seriedade do caso de Terry Schiavo.

Quais são os pontos em discussão, os que interessam, os que não se prendem com argumentação do tipo "o que o marido quer é dinheiro", "a família, o que quer, é aparecer na televisão", ou, mesmo, "coitada dela, que pode estar ali a sofrer!" (embora este último argumento nos remeta a desconfortos de ignorância)?

São estes:
1 - Schiavo está mesmo em coma? Assumamos que sim. Embora as imagens que nos mostram na televisão o contrariem, mas podem ser antigas. Está em coma. Muito bem. Ou muito mal, como queiram.
2 - Está morta? Leiam isto, se eu vos parecer pouco claro. Está cerebralmente morta? Alguém declarou a morte cerebral da senhora? Deixem-se de detalhes que agora não importam, sobre se a morte, a verdadeira morte, corresponde à morte cerebral e dela se decalca. Há critérios, guardem as objecções para quando se discutirem esses critérios, que há quem discuta. Mas agora não. Vejamos, eu repito: foi declarada a morte cerebral da senhora?
Não pode ter sido. A senhora respira. Como lhe fizeram, por exemplo, a prova da apneia? Tapando-lhe o nariz? A senhora respira espontaneamente, não está sob ventilação mecânica, tem o seu centro respiratório íntegro (ou, pelo menos, funcionante). Não pode ter sido declarada a sua morte cerebral, portanto.
3 - A senhora parece um vegetal? É isso? Bom, isso não é um argumento válido para o que aqui se deve discutir. Querem que vos lembre do vosso cuidado a regar as vossas plantinhas, as que tendes no vosso quintal, ou nos vossos vasos? Não, não vamos por aí, que não vem ao caso.
4 - A senhora disse que queria morrer? Bom, não pode dizer, pelos vistos. Nem isso, nem o contrário.
5 - Há quem queira cuidar dela, assim conforme está? Há. Expressaram-no.
6 - É o direito à alimentação subtraível a qualquer cidadão? É, evidentemente. Por torcionários pouco escrupulosos. Já se torturou gente assim, privando-a de comer e de beber. Notem bem: a alimentação entérica por sonda (nasogástrica, no caso da senhora Schiavo) não se constitui num tratamento! É um acto humanitário! Trata-se aqui de alimentá-la, apenas, pelos meios possíveis no caso dela. Nos EUA parece que a alimentação por sonda (que não é, não confundam, uma forma de nutrição artificial, parentérica) é considerada uma forma de tratamento. Felizmente, em Portugal, não é. Alimentar é, apenas, isso mesmo: alimentar. Um direito de qualquer pessoa, doente ou não.
7 - Não sendo legítimo considerar a alimentação um tratamento (há muito tempo que, neste e noutros campos, os EUA não se constituem exemplo a seguir para ninguém), sendo ela, a alimentação, antes, um direito básico de quem quer que seja, uma medida de suporte básico de vida, como se costuma dizer nos hospitais, a que propósito se suspende esse direito seja a quem for?
8 - É ou não verdade que a senhora Schiavo, no seu apregoado estado vegetativo, corre (e deve ter corrido sempre, é até estranho que não se fale de nenhuma intercorrência prévia que tenha tido; não as terá havido? E, se as houve, como se lidou com elas?) risco infeccioso acrescido, mesmo do ponto de vista respiratório? Claro que é verdade.
9 - E é ou não é verdade que, perante esta evidência de todos conhecida, o mais avisado seria aguardar por uma dessas inevitáveis intercorrências e, nessa altura, ponderando a utilidade da adopção de medidas de suporte avançado de vida numa doente em coma irreversível, optar, com a legitimidade que adviria do nosso actual estado da arte, por não as iniciar?

É que, assim, tal como foi feito nos EUA, baralham-se as coisas. Doentes em coma, com doentes em morte cerebral. O direito do próprio a escolher lucidamente com o direito de quem, apenas, não suporta olhar para nós, se sofremos ou vegetamos. Toma-se a parte pelo todo e as nabiças pelos grelos. Que é o que se costuma fazer quando não interessa, verdadeiramente, discutir.

Para mim, las cosas están claras: alimente-se a senhora. Não o fazer é um crime. Até porque concorre para decredibilizar outras causas, essas sim, nobres e úteis. Embora, sempre, discutíveis.

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