A febre da etiqueta
É evidente que tudo é comparável, na perspectiva, subjectiva, de quem compara. Pode-se comparar batatas com nabos, do ponto de vista do sabor, se cada um dos tubérculos se apresenta frito aos palitos. Pode-se, até, comparar a praia e o campo, como fez a Rute Marques, para reforçar de forma mais límpida o prazer que expressou em estar na Quinta. E pode-se comparar filmes que, incidentalmente, trespassam um tema em comum. Deve ser por isso que se fala, correntemente, de filmes sobre a segunda guerra mundial, de filmes sobre o holocausto nazi, de filmes sobre o racismo, de filmes sobre o Vietname ou de filmes sobre a eutanásia. Cataloga-se e, com isso, simplifica-se. Passa-se a observar o mundo através do crivo, regulador, do pré-juízo.Confesso que não vejo qualquer interesse ou pertinência em comparar o Mar Adentro com o Million Dollar Baby apenas porque, em ambos, os protagonistas escolhem a morte assistida. Ou, mais absurdo ainda, se se critica o Mar Adentro por, alegadamente, aligeirar a discussão da eutanásia (ver o que diz o Luisinho de que o besugo falou no post anterior a este), imputando-lhe intenções éticas que, eventualmente, nunca terão, sequer, assaltado os sonhos do Amenábar.
O Mar Adentro é, curiosamente, um filme vivo. Segue o rasto da permanência, daquilo que vive perante a presença da morte. Nunca se afasta da inquietude (ou, pelo contrário, da gratificação) de se saber que, perante a iminência do nada, tudo o resto permanece vivo, no mar ausente da vista, nos montes que separam Ramón do mar - da vida.
A morte, no Million Dollar Baby, é uma morte contida. Uma morte solitária, independente do mundo, auto-subsistente, egocêntrica. Moralmente anti-pedagógica, enfim. Morre-se, afinal, porque se esgotaram as hipóteses de uma vida feliz. Não se nega a vida em busca da morte; antes se rejeita a existência.
Gostei de ambos, na verdade. Acho-os insusceptíveis de aproximação, a menos que se queira fazer doutrina bacoca como, magistralmente, faz o Luisinho de que o besugo falou; ou que se tenha o hábito de comparar a praia com o campo. E, por razões minhas, que só servem, na verdade, como razões exclusivamente minhas, o Mar Adentro perdurar-me-á no pensamento por muito tempo.
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