blog caliente.

27.3.05

Negros Hábitos

A blogosfera clínica (besugo incluído) anda entretida a discutir a mais famosa medida de Sócrates: a venda de medicamentos fora das farmácias. Parece-me natural que o tema lhes suscite reflexão, porque lhes está próximo. Já duvido, contudo, que mereça tanta discussão. A menos que se discuta muito para além da venda de medicamentos nos hipermercados e similares.

Discutir o grau de liberdade para se comprar aspirinas e panadóis é, se calhar, bem mais do que uma questão de saúde pública. É um conceito civilizacional. No fundo, trata-se de saber se deve, ou não, o Estado intervir ou condicionar, sempre que, num juízo de previsão, seja provável (estatisticamente provável) que, sem tal condicionamento, aumente o risco de comportamento social desviante que gere, a médio ou a longo prazo, dano ou desequilíbrio apreciável na comunidade. Ou, o que vai dar no mesmo, saber como se burila o espaço de liberdade individual em função do bem comum.

Todos sabemos que vivemos condicionados. Somos vítimas, passivas e resignadas, de extensos e globalizados condicionamentos, como aqueles que transformaram o baço do Beckham num fenómeno de histeria mundial colectiva. Ou que nos fazem acreditar que os computadores da Microsoft são os melhores, apenas porque são os mais conhecidos. Ou, ainda, os que nos fazem, gradualmente, cada vez mais perturbados sempre que acendemos um cigarro, por muito que já soubéssemos que o tabaco mata. A questão (e a discussão) da venda livre das aspirinas e quejandos deve situar-se exactamente aqui. Falamos, portanto, de propaganda, como a arte de modificar comportamentos potencialmente nocivos.

Não discuto, porque sei que existe, boa fé nos profissionais de saúde (agentes, inconscientes, dessa propaganda) que alertam para os riscos de sobredosagem ou intoxicação por ingestão desses fármacos. Até aqui, não só se agradece como se exige. É para isso que lhes pagamos. Certo, besugo?

O passo seguinte já se tolera menos bem. Aquele em que todos eles, quase em uníssono, expressam perturbação em face da mera hipótese teórica da venda livre de medicamentos. E a sua (deles) inquietação é consequência da sua crença de que ninguém está munido de sensatez e prudência suficientes para saber auto-regular a ingestão de medicamentos ao alcance da mão e do seu juízo, se os comprar no mesmo local onde habitualmente se abastece de maçã raineta.

Que imprudência é essa, tão avassaladora, que não nos permite avaliar sozinhos o risco associado à ingestão de medicamentos? E o que tem essa alegada imprudência de diferente com o acto de fumar? Porque é que ninguém discute a venda livre do tabaco, cujos efeitos nocivos estão tão distantes dos (aliás, eventuais) efeitos nocivos dos panadóis? Se, no caso do tabaco, nos bastamos com as opressivas e repressoras mensagens de letras, gordas e pretas, que ocupam metade do maço, por que razão se discute se as aspirinas, tão redentoras nas odiosas enxaquecas, nos podem ser fornecidas em qualquer lugar e a qualquer hora?

Informem-nos, sempre que nos apetecer comprar uma tablete de Melhoral. Ponham etiquetas do tamanho da caixa, alertando-nos para os riscos da sua ingestão. Banam, do interior, as literaturas inclusas (que, paradoxalmente, todo o leigo gosta de ler, sobretudo na parte das contra-indicações) se as acharem demasiado silenciosas. Inundem-nos de todos os avisos que acharem necessários, até com luzinhas a piscar, se necessário for. Mas não discutam tão profundamente por tão pouco. A solução já existe, já foi inventada e resulta. Pode não ser a ideal, mas é a possível.

Entendam de uma vez e tracem, com rigor, a ténue linha de fronteira entre a informação invasiva - que aceitamos há muito, helás!, por habituação - e a ingerência. Disso, eu não gosto. Ninguém gosta.
Ninguém é assim tão estatisticamente acéfalo.

View blog authority