Crivos
Aquilo que nos vai acontecendo, à medida que os anos passam, é filtrado, cada vez mais, pelo crivo da experiência, do saber. Pelo menos do nosso saber, que é o saber que temos. É um crivo que tende a ser de malha cada vez mais fina, um crivo sempre em construção. Eu tenho um assim, ele lá está a trabalhar mesmo sem que eu me esforce muito, como se fosse independente de mim. Mentira: porque sou eu. Exactamente.Mesmo assim, de vez em quando, o crivo falha. Lá se rompe uma malhazinha e, quando damos fé, aí estamos nós a reagir mais a quente, com maior emotividade, menor contenção. Isto sucede, geralmente, quando somos apanhados de surpresa. Tanto pode acontecer em situações agradáveis, comoventes pelo próprio prazer inerente às coisas boas, como perante qualquer desgosto com que não contávamos.
Perante pestilências, curiosamente, o meu crivo funciona na perfeição. Ainda bem, há sempre algum risco de contágio no contacto com a putrefacção.
Hoje, dum dia cheio, salpico para aqui três coisas simples, ilustrando o que atrás deixei dito.
1 - Pessoas simpáticas e talentosas pareceram apreciar uma coisa que escrevi ontem. E disseram-no, evidentemente, senão como saberia eu? Em um ou dois casos até brincaram com o que eu rabisquei. Isto vai-nos acontecendo a todos, a uns mais que a outros, é a lei da vida. O denominador comum é que, de facto, gostamos todos que gostem de nós, que reparem em nós, mesmo que não seja esse o motor que nos faz funcionar. É sempre agradável e comovente e, bem vistas as coisas, estimulante. O JPT, o Miguel e o Nélson fizeram-me bem, surpreenderam-me, tornearam-me o crivo. E acho que se nota.
2 - Morreu Henrique Mendes. Eu nem sabia que ele estava doente, nem internado. Soube da sua morte no início da tarde e pressenti logo comoção em casa. Os meus filhos estavam, de facto, consternados, porque gostavam muito dele naquela série "Médico de Família" que, às vezes, víamos ao serão. Lá os consolei. O pior foi depois: quer na SIC, quer na RTP, os programas de homenagem fizeram-lhes regressar as lágrimas aos olhos. O mais velho chorou convulsivamente, o que se entende, os miúdos a crescer começam a pensar na morte e a colar a sua possibilidade aos avós, aos pais... a toda a gente. A minha mulher também chorou. O Zé Pedro, esse, chorava, sobretudo, a morte dum homem que ele tem a certeza que era bom. Eu nunca tinha pensado muito nisso, mas também passei a ter a certeza que sim. Não é a gente pensar que quem morre é bom ou mau, muitas vezes, que nos faz chorar, ficar tristes. Nem a morte tem o poder de nos reduzir desta forma maniqueísta, feita só de preto ou só de branco. Mas não me custa nada admitir que acredito, plenamente, porque o meu filho me disse, "que sim, que morreu um homem bom"... E lá me furaram o crivo, novamente. Ou ele se deixou furar. E, nestes casos, também vale a pena.
3 - Um tipo qualquer dedicou-se, hoje, a babujar umas coisas depreciativas a meu respeito e de alguns amigos meus. Diz quem o ouviu que o pobre homem parecia num estado lamentável, tentando equilibrar-se entre a raiva e o desespero, espumando, se calhar a braços com uma abstinência farmacológica qualquer. Tentava esgrimir com uma verborreia ornamentada de fácil (por tão óbvia e tosca) ironia. Ironia essa que, mesmo assim rasteirita, ainda teve necessidade de explicar a alguns dos ouvintes, pelos vistos. Isto acontece muito aos néscios que contam piadas "geniais" a néscios: às vezes têm de acabar por lhas explicar. É evidente que a gente toma nota destas coisas, são acontecimentos, mas o nosso crivo faz-nos sorrir enquanto decidimos: "O pobre disse isso a uma distância suficiente para lhe dares uns tabefes na franzina constituição global de pestilento? Não. Isto é, para ti, inesperado? Também não. Incomoda-te? Não. É importante? para mim não. Provocaste-o? Nem o conheço! Tinhas-lhe perguntado alguma coisa? Neribi. Então não lhe ligues. Perfeitamente".
Já está, foi fácil: viram a utilidade que pode ter um crivo destes, que só deixa passar o que vai sabendo que vale a pena? Que calmaria boa!
E, como conheço os meus amigos, suspeito que possuem crivos tão competentes como o meu: com permeabilidade cada vez mais selectiva, nunca com impermeabilidade total, que pode fazer-nos perder as coisas boas.
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