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7.2.06

"Can you handle the truth?"

Besugo, antes de mais devolvo o abraço. Acho que me entendeste bem. Li e reli o que escrevi, tanto fora como dentro dos parêntesis, ainda antes de publicar, para ver se eu próprio me entendia.

Antes de mais, arrumo com o assunto "Quebradas", que não tem nada que ver com aquilo de que quis falar. Não conheço a história, mas não me parece diferente de muitas outras histórias de crimes que por aí se praticam. Tem o detalhe pictórico de levarem a "roupinha de ber a Deus", mas isso pouco importa, a não ser como auxiliar de construção da tua narrativa. É assim a modos como eu caracterizar como família pós-moderna a do Pai e da Avó que terão morto a menina do Porto. Não interessa para nada. Porque há famílias em que o casamento nunca existiu ou se perdeu, em que os meninos são educados pelos avós, e tudo corre (na medida do possível) bem. Como também é verdade que eu e tu já fomos a muitos baptizados sem ter ficado com vontade de linchar ninguém (excepto, talvez, o Padre, pela homilia demasiado longa ...). Adiante, por isso.

Volto ao tema, para dizer o seguinte: quando se lida com esta coisa complexa que é (são) o(s) mundo(s) para lá do aconchego da civilização judaico-greco-romana a que pertencemos, não é fácil saber como lidar com esse(s) outro(s) mundo(s).

Numa perspectiva de mera aplicação dos nossos quadros lógicos, e baseado na história da nossa própria civilização, acharemos quanto muito que essa malta está uns séculos atrasada em princípios que hoje são para nós tão básicos como a secularização do Estado, o primado do direito sobre o livre arbítrio, aquela ideia de que há uma coisa chamada direitos do Homem, a liberdade política e de expressão, etc. Coisas velhas de duzentos anos, que já vinham escritas na Declaração da Independência dos USA, pelo menos esboçadas no "Code Civil" francês, nos nossos textos constitucionais oitocentistas e em muitos escritos de muitos pensadores-políticos e políticos-pensadores (quando essa gente existia), sobretudo europeus e norte americanos.

Estando eles duzentos anos atrasados - pelo menos - teremos (teremos?) que ter ainda mais paciência com outras coisas mais comezinhas como a igualdade dos sexos, ou princípios de discriminação positiva daqueles que carecem de tratamento preferencial.

Assim, e nesta cândida, algo sobranceira até, perspectiva, tudo estará em mostrar ao(s) mundo(s) que rodeia(m) o nosso como é bom o nosso viver. Como somos todos respeitadores uns dos outros. Como temos liberdade de expressão. Como somos democráticos. Como vivemos em paz.

(O problema é que esses outros mundos vêem, sobretudo, como somos ... ricos. Mesmo os mais pobres de nós, somos incomparavelmente mais ricos do que eles.)

E eles - se forem razoáveis - seguirão os nossos conselhos sobre como se devem organizar em sociedade. E farão em 20 anos o que nós e os nossos antepassados fizémos em 200.

Bem ... isto era o que ditaria a lógica. Mas a experiência recolhida, nesta matéria, no séc. XX e já neste XXI é assim um bocadinho ... amarga.

E a verdade é esta. Mais de 50 anos passados sobre o fim dos impérios europeus (30 no caso português), o quadro é desolador. Em África, no Próximo, no Médio e no Extremo Oriente.

Como o que se passa nesses continentes desafia uma lógica que julgávamos inatacável, funcionaram durante muito tempo os complexos de culpa (sobretudo) dos europeus. Ora a miséria reinante se devia ao nosso passado colonial, ora à avidez dos empresários que sobreviveram (com lucro) ao fim dos impérios, ora à corrupção de que também éramos (como corruptores) culpados, ora à guerra fria (até 1990), ora à globalização (depois disso), ora à América (Clinton ou Bush, pouco importa).

Mais recentemente, despertou a questão "muçulmana". Aqui, centramos a atribuição de culpas em duas entidades: Israel e os EUA.

O que eu quis escrever tem, vaga e confusamente, a ver com tudo isto. Irrita-me o conforto de sofá com que olhamos para tudo isto, sossegando-nos sempre pensando que não tem nada a ver connosco e apaziguando a nossa consciência com as culpas de alguém. E até achando-nos solidários com "aquela pobre gente". Gostando de os ver a queimar bandeiras americanas e israelitas, pese embora o incómodo de acharmos que eles não deviam recorrer a bombistas suicidas. E o Bin Laden até dava para fazer umas "T-shirts" giras (como as do Che, pois então), não fôra ter-se excedido um bocado com aquela coisa das torres. Mas, coitado, ele é um revoltado contra a dinastia saudita, como se sabe produto do imperialismo americano e dos seus interesses petrolíferos.

Conforto de sofá até ao dia ... em que formos mesmo incomodados. E vermos agora umas bandeiritas dinamarquesas na fogueira não é sequer um incómodo. Quanto muito não encaixa nas nossas ideias feitas de que - como se sabe - as bandeiras "a queimar" por esses pobres diabos são as dos americanos. O que achamos (sempre) merecido e muito bem feito.

Então e quando chegar um incómodo a sério, de duas uma. Ou tem razão aquele coronel de Guantanamo (fase pré Al Qaeda) interpretado pelo Jack Nicholson num filme com o Tom Cruise, sobre a inconsciência dos que estão "do lado de cá" de que, para haver lado de cá, tem que haver "vedação", "fronteira" e quem a guarde. (a frase em título é adaptada de uma deixa desse filme, magistralmente dita pelo cabotino do Nicholson, para tentar justificar uma coisa tipo "Quebradas" que tinha ordenado na base).

Ou tem razão o H.G. Wells no livro "A Máquina do Tempo". Acabaremos, por falta de força anímica para defender com convicção aquilo que conquistámos ... como gado. (besugo: recomendo-te que o leias, se não leste já. É um livrinho pequeno, mais um conto que propriamente um romance, mas é interessante).

Agora já me entendeste? Eu não escrevi o que escrevi por "tolerância". Disso, tenho pouco. Mas em vez de demonstrar a minha intolerância para fenómenos de destruição de embaixadas e bandeiras dinamarquesas, (nada de novo, salvo o país), demonstro-a para com a pacatez generalizada que tudo isto vai colhendo cá pelos nossos burgos. Como se ainda fossemos culpados pelo que se ensina nas escolas corânicas do Paquistão. PQP os gajos, se é que me faço entender.

PS - Faço em qualquer caso notar que não tenho particular simpatia pela ofensa de credos alheios, e que a acho de mau gosto. A verdade, porém, é que na civilização a que pertenço, já não espero grande coisa nesse campo (do respeito). E que, mesmo quando me chateio, nem por isso queimo embaixadas ou lincho pessoas.

PPS - O PS anterior é dirigido à equiparação "lolitiana" dos cartoons do Maomé com uma tira do Calvin e Hobbes. Note-se: eu até acredito que o dinamarquês acha que é a mesma coisa. O problema é que não é. E é uma pena que isso se discuta pelas razões erradas, ou seja, porque o Islão, como religião, está refém de uns tantos assassinos tresloucados e dos não menos assassinos e não menos tresloucados professores das suas "Madrassas".

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