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8.6.05

Sobre dores

"A única dor suportável é a dor dos outros".
Durante muitos anos ou mesmo séculos, não foi dada devida atenção ao problema da dor pelos profissionais de saúde. No que respeita à formação, quer pré quer pós-graduada, a dor não tinha praticamente relevância; era considerada, tradicionalmente, um sintoma difícil de tratar, envolvendo em alguns casos, medicamentos sujeitos a restrições legais, como os opióides, aos quais foram atribuídos riscos, nomeadamente depressão respiratória e dependência, muito superiores ao risco real. Por outro lado, a sua importância enquanto factor de morbilidade só recentemente foi reconhecida. Do doente esperava-se que tolerasse a dor e que, simultaneamente, não lhe desse muito relevo em termos de queixas. Daqui resultaram práticas diversas, como, por exemplo, a analgesia em SOS no pós-operatório, a desvalorização sistemática da dor no velho e na criança, as doses sub-terapêuticas, diria mesmo homeopáticas, de analgésicos, sobretudo nos doentes poli-traumatizados e oncológicos.
Esta realidade prolongou-se, nomeadamente na Europa Ocidental, em função, entre outros, de conceitos oriundos da filosofia judaico-cristã, que atribuíam à dor um carácter potencialmente libertador; aliás, este conceito traduz-se por frases tão usadas como "a dor santifica a alma", "o que arde cura", "sofrer na terra para ter um lugar no Céu".


Isto pode ser lido, no seu contexto, aqui. E, consolidando o assunto, agora abordando os mitos da morfina, aqui. A autora (o nome está nos artigos) é daquelas pessoas que, se outras qualidades não possuísse (e possui, se possui!), seria credora, ao menos, destas: é dedicada e experiente. Eu sei o que estou a dizer.

Vem isto a propósito deste texto em que se aborda, mais ou menos, o mesmo tema. Mais ou menos este: "o que é legítimo e defensável quando se trata de aliviar a dor?". Isto remete-nos para todos os sofrimentos, não é?
É um tema recorrente, causando-nos sempre imensa urticária imediata porque, de facto, caímos sempre no mesmo: a única dor suportável é a dor dos outros.
Talvez devêssemos ouvir mais vezes Sérgio Godinho. As palavras, mesmo. Ainda ontem me vieram à memória, aquilo da "corda do outro me prender o pé".

Acrescento que o Dronabinol, que ainda não tem genérico disponível, está aprovado como anti-emético e estimulante do apetite em doentes sujeitos a programas de quimioterapia nos EUA e no Canadá. Evidentemente, nos doentes cuja emese se revele resistente aos fármacos considerados de primeira linha.
Ah! Já me esquecia: é o Delta-9-tetrahidrocannabinol. Isso mesmo, talvez pudesse ser fumado, não sei. A virtude parece estar lá, mesmo assim. Como na morfina está.

É preciso, de facto, ir falando nas coisas importantes. Nem que seja pelo meio das outras que também são, admito. Os senhores entendem isto melhor se eu disser assim: nem sequer 1/100.000 de nós terá, em vida, um Ferrari belo de "rampante"; ou um tratado sobre economia publicado e, ainda menos, discutido; ou o reconhecimento (sincero) de mais de cinquenta pessoas pelo nosso valor.

Já dores...

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