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3.4.05

E a penumbra?

O Papa morreu.
Já morreram outros Papas, mas só me lembro deste. Se não viver tempo que baste para mais, este pode ter sido o único Papa que vi morrer. Lembro-me de Paulo VI, mas era quase bebé quando veio a Fátima. O seguinte não me viveu na lembrança tempo que chegasse para lhe recordar a morte.
Isto pode ser verdade para muita gente: este Papa, que agora morreu, pode ser o único que teremos visto morrer, em toda a nossa vida.
Isto é pouco importante, mas é verdade. Nem sempre as verdades são grandiosas.

Não se trata, apenas, de ter visto. Trata-se, quase, de ter assistido, penosamente, a uma morte penosa. Já vi muitas, mas não vem ao caso: é sempre a mesma.

Andei a ler o que se tem escrito "sobre a morte do Papa".
Há quem lhe chame João Paulo, quem lhe devolva o nome polaco, original. Li muitas coisas. Umas mais frias, quase em tonalidade de mero registo de obituário, outras mais derramadas de emoção. Verifiquei que a lucidez perante a morte, quando existe, se divide entre ambos os campos desta trincheira imaginária que separa os mais frios dos mais quentes.
A lucidez nem, é sequer, para aqui chamada. Distribui-se, de forma quase "gaussiana", ao longo do espectro das temperaturas. Nem vem ao caso.

Quando morre um homem ficamos sempre um bocadinho parvos. E dizemos coisas despropositadas. De facto, nem isso é estranho: que sabemos da morte para dissertar sobre ela? Podemos sempre falar sobre o homem que morreu, é verdade, mas falta-nos conhecer a sua derradeira dimensão para sermos certeiros.

Ao menos que haja bondade na morte. Faz falta algum silêncio, algum respeito, alguma ternura por quem morre. Pensando bem, nem sequer é preciso muito silêncio. Podemos falar, os que quisermos. Mas, quando alguém chega ao fim do seu caminho não carece de muita luz retrospectiva sobre os seus erros. Porque é, sempre, uma iluminação toda trémula, feita de pequenos indicadores apontados a pequenas porções do percurso. Minúsculas lâmpadas de cru néon, quando a pintura pediria sépias sacras. Porquê? Por não sermos capazes de suficiente luz para um trajecto inteiro.
Quando morre uma pessoa tem de haver sempre um bocadinho de tristeza. E um bocadinho de incondicional perdão. Mas, sobretudo, uma penumbra calma e sagrada, que nos permita ver o clarão de quem morreu.

"Sou ateu e, por isso...", "sou agnóstico e, outrossim...", "sou cristão, porém...", "gostava dele, todavia...", "detestava-o, contudo...", "abominava-o, portanto...", "compreendi-o, mas...".
Parecem muitas frases, não é? Mas não são. É só uma frase-tipo. Em que nos limitamos a derramar-nos como sujeito, prolongando-nos em vírgula e uma espécie de preposição adversativa.

São sempre frases más, que não nos deixam falar ou escrever sobre ninguém, não é? Só sobre nós.

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