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25.2.05

A Canção Desnaturada

Há músicas que, mesmo que nos pareça que conhecemos desde sempre, só se descobrem a sério por acaso, no momento e no contexto certos: estando, por exemplo, a sós, em perfeita predisposição sensorial para a música e com o adequado estado de espírito. Foi assim que, há uns tempos atrás, viajando sozinha de carro, ouvi com atenção involuntária a Canção Desnaturada, na versão da primeira encenação da Ópera do Malandro. Na peça, esta música é cantada pelos pais de Teresinha, a Curumbinha, que cresceu depressa demais. Há uma frase, nessa música, em que o Chico Buarque lamenta, com aquele inconfundível requebro da voz: “se fosse permitido/eu revertia o tempo/para reviver a tempo de poder te ver”. O que todos queríamos: parecer-nos mais com os pequeninos homens e pequeninas mulheres que, muitos anos passados, ainda somos. De preferência olhados de fora, por olhos protectores.

Eu aviso: esta música, ouvida com atento assombramento, é dolorosa. Fala de dor profunda, da dor mais ancestral da condição humana. Fala da consciência, latente, de que cada segundo se transforma em irremediável passado no segundo seguinte. É através dessa consciência, nostálgica mas plena, que paramos no tempo para apurar do passado o que é que, do que fomos quando fomos crianças, permanece no que sempre seremos. Somos sempre essas crianças, amadurecidas num corpo finito e numa alma maior do que nós. E, então, sucede sentirmos saudades de nós mesmos. Com "as pernas bambas".

É impossível estarmos mais vivos do que isto. Conduzidos, por acaso, por uma música. Boa música.

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