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13.12.04

Mudar

Lembro-me bem de quando tinha catorze, quinze anos. A voz a mudar, o corpo a esticar sem jeito, tentando boiar desajeitadamente nas águas rápidas e sempre meio turvas da indefinição do que por aí me viria. Um tempo bonito e cheio de temores, pelo mesmíssimo motivo. Que eu agora sei mas, naquela altura, não sabia: há uma certa beleza no medo, na ignorância de nós e do nosso lugar. Um temor que nos empurra para a boa cisma, para o recolhimento ocasional, que nos sossega o ímpeto de partir tudo e ficar ali a ver o que acontece depois. Porque nos parece, nessa altura, que o mundo existe sem nós e nós sem ele. É tudo visto de dentro como se fosse tudo lá fora, connosco não é quase nada.

Foi no tempo em que toda a gente que calhava aborrecer-se comigo, fosse pelo que fosse, me chamava caixa-de-óculos. Eu sofria com isso, era uma marreca que eu não me lembrava de ter até que ma lançavam ao lombo desprevenido. Lembro-me que sentia aquilo como uma traição, porque era sempre pelas costas (quando eu não contava) que me dizam o labéu. Vista daqui, a explicação é fácil: os outros tendem a ofender-nos quando nos pressentem um bocadinho de felicidade e era, precisamente, nessas alturas em que baixava a guarda por estar contente, que me faziam pagar o crime da minha calma e irritante alegria.
Também devo ter feito crueldades semelhantes, lembro-me de chamar "manco" ao C., por qualquer coisa que lhe vi luzir nos olhos e me fez lembrar, de repente, da perna que não tinha.

Crescemos com isto e por isto. E porque tem de ser.

O meu filho mais velho já fez quinze anos e andava desconsolado com a minha escolha. Ninguém se lembra disso, mas eu contei aqui. Quando começou o 10º ano empurrei-o para onde pensei que se sentiria melhor: para a área das ciências e da tecnologia. Eu gosto destas coisas das ciências e o meu gosto por elas nunca me impediu de gostar, também, das outras. Acreditei sempre na matéria enquanto fui, sempre, tentando olhar para além dela, enquanto lhe mexia. No meu hospital empurro macas com doentes em cima, observo-os e mexo-lhes com a calma e o respeito que os outros sempre me mereceram, faço de maqueiro e de médico com o mesmo jovial cansaço, porque quase nunca páro enquanto mexo. Bom, nem sempre és assim, caixa-de-óculos, admite! Admito.

O meu filho mais velho pediu para mudar e já mudou. Para a área das ciências sociais. Anda agora dividido entre o que ganhou (estuda coisas de que gosta mais) e o que perdeu (os amigos da antiga turma). E outra coisa, que tenho de lhe explicar muito bem, um dia destes, naqueles dias entre o Natal e o Ano Novo: ele pensa que me perdeu um bocadinho, que me desiludiu por não querer, com a força toda, o que eu lhe queria. Pensa, querido filho, eu vejo-lho nos olhos, que me falhou.

Nunca deixem um filho de quinze anos, os senhores são quase todos mais novos do que eu, oiçam-me agora um bocadinho, nunca deixem um filho de quinze anos pensar assim durante muito tempo. Mas aprendam também: deixem-no pensar assim, ao menos, durante um bocadinho. Para ter tempo de aprender que mudar a vida custa sempre alguma coisa. Custa,pelo menos, aquilo que deixamos quando nos vamos embora.

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