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12.12.04

Necrologia suave

Gosto mais de reler Eça que de reler Camilo mas acho que emprestava, mais depressa, o meu carro a Camilo.

Eça tinha uma verve fácil, encantadora, grácil e saltitante. Era um polemista brilhante, um cronista quase irritante, de tão agudo. Um talento à solta, como se estivesse sempre fora de si.
Camilo era um homem corajoso e bravo, dono da sua calma tendência para o cacete desfechado em alheia cornadura. Um homem mais completo. Mas matou-se, mesmo sabendo mais palavras do dicionário para demonstrar a diferença entre ambos.

Admito que há uma coragem diferente em cada homem. Morrer dum cirro no estômago ( e Eça sabia que o tinha, criou personagens com cirros em todos os seus livros) é diferente de morrer por auto-determinação, com um tiro na têmpora. Há quem não suporte viver amputado de coisa nenhuma. E há quem se deixe morrer sem ligar muito a isso de morrer.
Eu aqui divido-me, mas sintetizo a minha dúvida numa projecção singela: deviam estar vivos os dois para haver mais livros bons que se pudessem ler.

Admito que me perguntem: por que raio emprestavas tu mais depressa o carro a um homem que se matou do que a um homem que se morreu?

A resposta é simples: o meu carro é de gama média, o tipo de carro que se empresta sem pensar muito. O meu carro é como eu, como os meus gostos e desgostos: fui eu que o escolhi, sou eu que os escolho. Quando posso.

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