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11.12.04

Escritas livres

O besugo deixou ali em baixo um desafio temático: falar de Eça e de Camilo. Eu sei que o besugo gosta bem mais de Eça do que de Camilo, ao ponto de, de quando em quando, tentar diminuir a obra deste (isto também é um desafio, besugo...). De mim, eu sei que ainda me lembro de ter ido ver o filme do Manoel enquanto lia o "Amor de Perdição", era eu catraia, e de ter gostado muito do filme (pasma, besugo!), como gostei muito do livro... e são tão parecidos, um com o outro. Mas não pretendo falar do Manoel (isso seria o terceiro desafio, mais difícil, mais belicoso...).

Qualquer português que tenha passado pela sua formação secundária com atenção, ao menos, mediana se lembra de ter estudado Eça e Camilo. Vasculhava-se "Os Maias" a fundo; estudavam-se as correntes românticas da arte através do "Amor de Perdição". A menos que, por estímulo extra-escolar, se tivesse antes disso tomado contacto com qualquer um deles, é na adolescência, momento propenso a excessos emotivos, que se conhece Carlos da Maia e Maria Eduarda, Simão e Teresa. Como se se tratasse de camadas crescentes de motivada compreensão, é só mais tarde que aprende com eles, mas é então que nos marcam. A partir daí, lê-se e relê-se Eça ou Camilo com gratificada vontade de ler a nossa boa história e de revisitar a primeira vez que os lemos.

De Lobo Antunes li, em tempos idos, quase tudo o que, na época, já tinha escrito, embalada em parte pela vontade, em parte por simples gregarismo (muita gente lia, na época). A dada altura, apercebi-me de que quase tudo era recorrente: os temas, a forma, os lamentos, as acusações; e pu-lo de parte. Leio-o, agora, de vez em quando, apenas nas suas crónicas. Lembro-me, particularmente, de uma em que descreveu uma visita ao Eugénio de Andrade doente. Egocêntrica, a descrição, da previsão da morte e da dor da morte. Ainda assim, ou por causa disso mesmo, bonita.

Quanto a Saramago: gostei de "O Ano da Morte de Ricardo Reis", li sem desagrado a "Jangada de Pedra". Quando me dispus a ler "A Caverna", não passei das primeiras páginas. Desmotivou-me o tom seco, compassado, falho de pessoalização. Quanto aos dois ensaios, nem o prefácio lhes li. E Saramago, ele próprio, está longe de ser o mobilizador de mudanças que ele julga ser: a importância que se auto-atribui perturba-lhe fortemente a capacidade de influenciar.

Faltam-lhe "causas", a ambos. Faltam "causas" ao mundo, hoje. Causas colectivas, coesas, agregadas. Situamo-nos, na história, numa espécie de epílogo do pensamento, onde todos os tumultos já se foram, em que as causas já se experimentaram e, por vitória ou por derrota, já se extinguiram. Escreve-se demais sobre a perturbadora ausência de futuro onde se possa situar a crença. O mundo está demasiado inventado.

Além disso, não passava pela cabeça a Eça ou a Camilo, enquanto escreviam, imaginar se as suas obras viriam a ser, enquanto vivos ou depois de falecidos, best-sellers ou trampolins para Nobéis. Eça e Camilo escreveram sem saber e sem cuidar de saber se outros gostariam do que eles escreveram. Criaram livremente, sem constrangimentos ou apesar deles. Era outro, o contexto histórico: o privado era mais significante do que o público.

Lobo Antunes e Saramago escrevem ostensivamente sobre si, ainda que o assunto lhes seja alheio. Escrevem como quem diz "aqui vai mais uma obra-prima e fui eu que escrevi, eu que, embora ainda esteja vivo, já sei que tenho lugar prometido na história da literatura". Nem Eça nem Camilo algum dia experimentaram, nem sequer longinquamente, a sensação de escrever para massas. E nunca sentiram o "arrepio da fama".

Não me esqueço, porém, de que o passado nos parece sempre mais pacífico - e portanto mais fácil de compreender - do que o que o presente. Se me lembrar, e podendo, volto a falar nisto daqui a umas décadas. Se não for antes.

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