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7.11.04

O silêncio e o sigilo

Li, por aí, duas formas distintas de analisar o comportamento do enfermeiro que denunciou a rapariga que na semana passada foi julgada em Lisboa.

Uma delas é serena, reflectida. Está expressa, de forma límpida, no Mar Salgado e não carece de qualquer complemento. A quebra do sigilo profissional não só é legítima como se impõe se a ameaça ou risco de dano é iminente, tal como se passa nos casos de violência conjugal ou de maus tratos inflingidos a menores. Apenas nesses casos, mas imposta, nesses casos.

A outra é intransigente e vertiginosa. Arvora o cidadão que esteja na posse de informações privilegiadas num agente fiscalizador do próximo. Promove a pseudo-moralidade do castigo imposto ao terceiro prevaricador. Estimula o comportamento delator e exige que os outros devotem gratidão a esse comportamento. Em suma: transforma o dever de sigilo profissional num direito subjectivo à denúncia. Está amplamente explanada aqui.

Em matérias moral e socialmente delicadas - como a do aborto, as opiniões intransigentes ainda me parecem mais intoleráveis. Como quase sempre sucede quando, de um lado, a lei se sucede temporalmente às práticas sociais (ou se torna obsoleta em face da imposição dessas práticas) e, do outro, a moral religiosa se imiscui no Direito, a criminalização da IVG não elimina a sua prática; apenas a empurra para a clandestinidade.

É na clandestinidade de risco que são praticados abortos por pessoas que já antes de o praticarem eram socialmente excluídas e que se vêem, repentinamente, num (mais um) aterrorizante filme da sua própria vida. E o Estado, que já lhes negou quase tudo, negou-lhes também a possibilidade de praticarem aquele aborto (incontornável e necessário, ainda que tenha de ser clandestino) em local condigno, sem riscos e sem terror. O enfermeiro, por sua vez, negou-lhe a compaixão, que era tudo o que se lhe pedia. Exigia. Não devia ser necessário invocar-lhe o dever de sigilo; não devia ser preciso que lhe impusessem o silêncio.

O Estado, que redundantemente lhe negou quase tudo, só não lhe negou uma coisa - a perseguição criminal. Com a ajuda do enfermeiro que, eventualmente, será punido por coisa nenhuma, porque não há punição possível para tão sinistra denúncia.

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