blog caliente.

12.11.04

Erros

Acompanhei, há alguns meses, a forma equilibrada entre a revolta e a sensatez com que João Tilly nos descreveu, a todos os que o lemos, a morte do Pai.
Apeteceu-me, na altura, dar-lhe um abraço solidário. O meu Pai está vivo, o dele morreu, bastaria isso. Mas era, sobretudo, um abraço a um homem desgostoso, profundamente emocionado, questionando, criticando abertamente, mas mantendo um equilíbrio quase perfeito entre a dúvida ("eu penso que isto não devia, não podia, ter acontecido assim") e a certeza do inevitável ("quão duras e injustas podem ser as excepções quando nos tocam a nós"). Não fez, nessa altura, generalizações injustas. Fez justas perguntas. Apeteceu-me abraçá-lo (e fi-lo, excepcionalmente, nos comentários do seu blogue) pelo toque genuíno de "involuntarismo" que, na sua descrição, apesar de tudo, atribuía àquilo que, legitimamente, porque se sentia lesado, era, para ele, uma culpa. Sim, nem sequer era só de erro que ele nos falava.

Não sei, confesso, o que se seguiu. Não sei se se apurou ter havido erros, se terá havido culpa, incúria. Não sei mesmo. Sei, apenas, o que ele escreveu nessa altura. E, na altura, bastou-me.
Saber mais ou não é, até, irrelevante. Não para a nossa vida de todos os dias, mas para o que vou dizer a seguir.

Recentemente, no seu blogue, João Tilly escreveu diferente. Generaliza a sua desconfiança em relação àquilo que chama "a classe médica", afirmando sobre ela que "tem de descer à terra", "tem de ser obrigada a defender-se" e, a cereja sempre no topo do bolo, "esta classe privilegiada tem de prestar mais atenção àquilo que faz e ter mais respeito pela vida humana".

Honra lhe seja feita, João Tilly publica no seu blogue um e-mail de Alfredo Vieira, que se depreende ser médico, que expressa tristeza pelo que João Tilly escreveu sobre os médicos em geral. Mas João Tilly apouca o e-mail numa diatribe que escreveu sobre a formação médica, tirando-se dali, aparentemente, que pensa que o erro médico é mais grave, na sua consequência, que o erro noutras profissões. E, dessa verdade - porque é uma verdade -, extrapola, abusivamente, para a gravidade suplementar do erro médico na sua essência. O que denota má fé. Julgar o erro pela sua consequência é intelectualmente inaceitável.

Esse texto de Alfredo Vieira explica a João Tilly, também de forma emotiva, que a "classe médica em geral", se descer mais à terra... quase se sepulta; que qualquer médico tem de se defender, apenas, nas situações em que qualquer outro cidadão o deve fazer também (quando o atacam); que os privilégios da classe médica "com carreiras multimilionárias" são, em muitos casos, a miséria do trabalho pesado, mal dormido e mal pago (quatro contos e seiscentos por hora ganho eu, que estou no topo da carreira médica, sou chefe de serviço, e ganho este balúrdio porque estou em dedicação exclusiva) e a suspeição constante; finalmente, o mais grave de tudo, que a "classe médica" (e, se eu faço parte dela - e faço! -, ou o João Tilly "se reescreve", ou nunca mais o leio) tem muito respeito pela vida humana.

Nada me move contra João Tilly. Comecei, até, basta ler ali em cima, por expressar o contrário. Como ele, desconfio do corporativismo, dos silêncios cúmplices que podem minar a credibilidade, a bondade, de qualquer classe profissional. Mais: de qualquer agremiação, mesmo duma sociedade filarmónica. Podia, até, ironizar e tentar diminuir (de forma baixa e desonesta) o que João Tilly tem escrito a este respeito, argumentando com uma coisa que ele próprio afirmou sobre o que escreve: qualquer coisa que ele disse sobre escrever sem sequer pensar, nem na forma, nem no conteúdo. Ele escreveu isto algures.
Mas não o faço.

João Tilly, que escreve e é lido, detendo essa responsabilidade acrescida que a leitura alheia confere ao que ele escreve, tem de se reformular. Tem o dever de se manter nos bonitos limites da tolerância, da justiça e do respeito que os médicos do seu País lhe devem merecer, para manter a legitimidade (que ninguém lhe contesta, pelo contrário) de poder protestar, indagar, inquirir, quando se sente maltratado por qualquer um deles. Ou por qualquer instituição em que qualquer um deles (eu incluído, evidentemente) trabalhe.

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