Reunião de Serviço
A coisa prometia. A reunião do serviço de Medicina Interna tinha, como ponto forte em agenda, o tema "como estamos, para onde vamos: a discussão, a decisão".
A mesa era mais ou menos igual à da figura. À volta, não havia nenhum tipo tão espadaúdo como o da "cabeceira de cá", nem nenhuma figura físico-intelectualmente tão decorativa que roçasse, sequer, a "sensual performance" da Mónica ou da Fátima Preto. Muito menos da Ana Maria Lucas, a única senhora, daquelas todas, que foi "miss"; embora o senhor Castelo-Branco quase tenha sido dama-de-honor, no tempo dele.
Também não havia comida sobre a mesa, verdade seja dita. Nem câmaras mais ou menos ocultas (espero eu).
A discussão centrou-se, como seria de esperar, não nos problemas do serviço (que os tem, tantos) mas, como era inevitável, no inefável serviço de urgência.
Houve quem apelasse ao espírito de sacrifício. Houve quem se queixasse de já não aguentar trabalhar mais horas por semana. Houve quem dissesse que tinha família (o que é ridículo, até parece que quem não tem família pode ser praxado adicionalmente, tipo "casasses-te, tivesses tido filhos"), quem batesse no peito sussurando alto que"eu trabalho muito", como se o trabalho dos outros, que é sempre medido por rasa menos fiável, não fosse trabalho, só porque é o trabalho dos outros.
Discutiu-se, na reunião do serviço de Medicina Interna, como era de prever, o serviço de Urgência. Esse cancro dos hospitais e do serviço de Saúde. A cloaca torpe e desgastante do sistema. A foz dum rio com muitos afluentes, em que todos os afluentes desembocassem, dezasseis Ganges em uníssono, na foz. Eu já disse isto. Discutiu-se como é que vamos continuar a remar bem a nossa barcaça e, dormindo cada vez menos, continuar a esvaziar os porões inundados pela turbulência das águas, com pequenos baldes de papel de jornal.
Erros de burros. O problema dos serviços de urgência hospitalares resolve-se com a assunção clara de que são serviços autónomos, devem ter quadros próprios, devem ser verdadeiros "serviços de urgência" (e não Serviços de Atendimento Permanente para consultas que têm de ser agora, disse-me o senhor doutor clínico geral que não sabe ler electrocardiogramas nem radiografias e, sobretudo, não está para ter problemas).
Os serviços de urgência devem ser tudo menos o que são. E os seus problemas, os do serviço de urgência, devem deixar de ser discutidos no âmbito das responsabilidades doutros serviços. E, muito menos, no contexto de "se vocês fizessem mais horas extraordinárias nada disto se passava".
Porque ao voluntarismo desbragado não pode, honestamente, apelar-se senão excepcionalmente. Mais: o voluntarismo não deve ser, nunca, programado. Nem promovido institucionalmente, como se fosse obrigatório. Porque o voluntarismo nos aproxima, perigosamente, da desresponsabilização ("coitado, estava cansado!"), atraiçoando-nos o profissionalismo. Porque o terreno da "desculpa do cansaço" é movediço e cada vez mais perigoso ("estava cansado, que não estivesse lá!") e, sobretudo, porque não é correcto atraiçoar a vida de ninguém - nem a nossa! - por "problemas que se resolvem atacando-os pelos cornos em vez de ser de cernelha". A cernelha é sempre uma alternativa, nenhuma praça de toiros aplaude uma pega de cernelha sem que se tentem, pelo menos meia dúzia de pegas de caras. E pegar isto de caras é, se calhar, assumir que não há mais pegas. Não, não falo aqui de "pegas" no sentido de putas, mas não deixaria de fazer sentido, em ambos os sexos. E, às tantas, em ambos os casos. Basta olhar para a figura.
Eu prossigo no tema, mesmo que não seja hoje. É uma jura.
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