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3.8.04

Paliar

1 - Os cuidados paliativos, entendidos como excelente prática, fazem parte do Plano Oncológico Nacional 2000-2005. Isto saiu no Diário da República, que é onde saem as coisas todas, as que se cumprem e as que não se cumprem. Mas saíu. Eu li. Muita gente leu. Mas não se cumpre. Será, talvez, caro.

2 - Pela mesma altura, foi proposta uma coisa chamada Rede de Referenciação Oncológica, que definia "portas de entrada", competências, ligações: pretendia agilizar toda a "gincana sofredora" do doente oncológico, estabelecendo com clareza as competências de cada instituição e o papel que se esperaria de cada uma nesta "guerra" pelos doentes com cancro. Uma guerra que é feita de muitas batalhas, que têm vindo a ser travadas de forma isolada, avulsa, plenas de voluntarismo (razão da Lolita) e de demissões (razão do Colega e... da Lolita). As demissões não são dos IPO, que seria de nós sem os IPO, senhores(!), as demissões são colectivas e começam, como começam todas as demissões, nos "poupadores de dinheiro" e nos "cuidados primários" (que são primários, muitas vezes, no sentido de primitivos).

3 - Nós, cidadãos médicos, temos montanhas de razões para existirmos: como cidadãos, adeptos de clubes (eu sou do Sporting), pais, filhos, consumidores, consumidos... assumimos um ror de plenitudes existenciais. Contudo, como médicos-apenas, só existimos utilmente porque há doentes para tratarmos. Sem doentes, como médicos, somos duma inutilidade semelhante à duma mosca num prato de sopa. Eu, pelo menos, gosto de sopas limpinhas e boas, sem corpos estranhos lá dentro.
E devemos participar no debate público da saúde como técnicos, como cidadãos, como conhecedores, como cientistas... como mais que prováveis doentes, utentes, o raio que quiserem. Faz-nos parte da essência, da nossa irónica essência, de todos os homens e de todas as mulheres, semear para colher. Que semeemos bem para colhermos, em seu tempo, boa "novidade". Não podemos é participar na discussão como "enfadados dum sistema que é a nossa razão de existir". Eu, não sei se já disse isto, separava muito bem as águas do público e do privado, isto era limpinho!

4 - Da amigável discussão que se iniciou (tarde cheguei... se calhar já acabou; espero que não, tenho 8 anos de experiência em oncologia médica e gostaria de participar) entre a Lolita e o MEM, o que me chama a atenção, desde logo, é o seguinte: bom sinal, haver discussão entre gente separada por pouca coisa... se calhar, apenas, pelo gosto que põe na discussão do que lhe interessa discutir. A separação que une, não acham?

Acabei de ler a resposta do Colega à Lolita. Antes tinha lido a da Lolita ao Colega.
Não me parece que haja, em nenhuma delas, vestígios de desrespeito ou de falta de simpatia. A senhoria que a Lolita usa, quando a usa, é sempre respeitosa. O respeito deixou de ser reverencial quando se percebeu que o respeito é outra coisa. O mesmo não se passa noutros sítios? É verdade, referi isso mesmo quando, um dia, um blogue excelente (como excelente é o seu) se referiu a mim, besugo ligeirote, dessa maneira. São tiques que aqui não temos, asseguro. Até sorrimos deles.

Não tenho recebido cartas, nem e-mails, de doentes oncológicos. Nem de familiares. A credibilidade dum besugo é frágil, merecidamente, aliás. Não me apetece explicar medicina a ninguém, muito menos a intelectuais. Contudo, trato cerca de 200 novos doentes oncológicos por ano. Façam o favor de acreditar que os vou mantendo vivos, aos que consigo, o melhor que posso: por isso, vão-se acumulando na minha consciência e na minha agenda diária de homem e de médico.
E, caro Colega, nunca diga a nenhum familiar de doente nenhum com um cancro gástrico, que tem pouco tempo de vida sem o estadiar: é que se tiver um adenocarcinoma gástrico que seja, suponha, um T2N0M0, Grau 1, isto por exemplo, pode ficar curado, como sabe, só com a gastrectomia. Não facilite com a Lolita, o respeito tem de ser bilateral; e já nem lhe peço, sequer, para não facilitar comigo.
No seu escrito, como calcula, os frasquinhos com pedacinhos de cancro são retórica pouco técnica. Qual era o estadiamento do seu doente? Como fez o estadiamento pré-operatoriamente? Que resultado obteve na TC abdominal que pediu, seguramente, ao seu doente? Donde lhe brotou a sentença sobre os "10 meses de vida"? Eu tenho doentes com cancro gástrico, vivos e bem, ao fim de 18 meses de quimioterapia, sendo estadios IV de início! Não operados, sequer! Não facilitemos nas explicações, para que os intelectuais que se interessam a sério (olhe a Lolita, e há muitos mais) por estas coisas não nos venham sugerir que somos, apenas, manipuladores. É apenas um reparo. Mas você sabe que eu estou coberto de razão: mesmo em Trás-os-Montes há doentes rústicos com internet, que pretendem discutir comigo novidades sobre tratamentos! Lembra-se do caso recente da capecitabina (oral), que um estudo extenso e credível aponta como alternativa vantajosa ao esquema endovenoso da Clínica Mayo (e, mesmo, ao de De Gramont talvez), no cancro colorrectal, em terapêutica adjuvante? Pois é, como sabe, isto não é verdade para aplicar nas primeiras linhas dum carcinoma colorrectal metastático... Mas eles perguntam, legitimamente perguntam.

Há sites na net que recomendam aos médicos: "leia isto antes que o seu doente leia". O mundo está assim, grande mundo, pedindo honestidade a todos para não sucumbirmos todos às mãos "culpadas e acusadoras" uns dos outros.

Eu percebi o que quis dizer quando falou em "perder tempo". Mas eu sou médico, não é comigo que você quer falar disso. Para explicar medicina a não-médicos tem de ser (desculpe a franqueza) mais ... como é que diz a Lolita?... Assertivo! É isso. As pessoas não têm tempo para reparar nas aspas todas em assuntos técnicos.

Tenho genuíno respeito e consideração por si. Acredite, é uma límpida verdade.
Gostaria de manter, pelo menos de tempos a tempos, esta discussão que me fascina sempre e que anda à volta da dúvida eterna sobre "o que andamos aqui a fazer e que caralho vale isso". Não me parece que esta seja uma questão universal na classe médica. Nos meus amigos, nos que eu conheço e admiro, é. Nos outros, não sei. Devia ser. Em si, caro Colega, parece-me profundamente que sim, que é. Admiro-o, também, por isso.

Mesmo que ninguém queira discutir, eu volto ao tema, porque me interessa muito. E desculpem o meu aleivoso calão, é um enfeite rústico da minha torpe natureza duriense.

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