blog caliente.

11.8.04

Deus nos livre!

Achei piada ao blog "professorsalazar". Não sei quem o faz, mas tem (aliás fino) sentido de humor, como o revela o título da categoria em que está o nosso blog: podia ser "os outros", "o reviralho", "não recomendamos". Mais simples ainda: segundo a lógica que neste mesmo blog se aplica quando se não gosta de outro blog, pura e simplesmente não haveria link de lá para cá.

Mas não. O autor desse blog fez questão de "linkar" muitos blogs, entre os quais este, com a categoria ... "Deus nos livre!". Bem pensado e melhor feito.

Não sei o que pensa quem faz aquilo, mas acho limitativo do blog em causa que o respectivo autor tenha escolhido "incorporar" o Salazar "lui même" (dis donc, besugo, tu percebes galicismos, non ?).

E explico porquê: ou continua num registo puramente gozão e provocatório, e rapidamente perde o efeito, ou começa a inventar "salazarices" que o Salazar nunca disse nem diria neste século XXI.

É que incorporar o Salazar em 2004 é impossível. O homem nasceu no séc. XIX, formou o essencial da sua personalidade e das suas convicções entre 1900 e 1920 e a partir da "mundivisão" que nessa época teve governou o País, até um tempo (anos 60) que manifestamente já não era o dele, já não o compreendia nem por ele era compreendido.

O salazarismo hoje é, por isso, e no meu modesto ver, um anacronismo por definição.

E passo a outro tema, que a frase anterior me lembrou: Salazar e o Salazarismo.

Há quem argumente que o Salazar, apesar de ser homem de outra época, nos deixou um legado, até ideológico, que pode ser aproveitado ainda hoje. E citam excertos de discursos como este que segue, lido em 1936: "Às almas dilaceradas pela dúvida e o negativismo do século, procurámos restituir o conforto das grandes certezas. Não discutimos Deus e a virtude; não discutimos a Pátria e a sua História; não discutimos a autoridade e o seu prestígio; não discutimos a família e a sua moral; não discutimos a glória do trabalho e o seu dever."

O que é que esta forma de pensar tem que ver connosco, hoje? Nada. Porque a palavra chave do excerto acima é a palavra "não". Aplicada à possibilidade/capacidade de discutir.

Admito que, num plano estritamente político e numa lógica de efeito imediato, esta "jogada discursiva" do Salazar foi brilhante. "Há coisas que não se discutem. Ponto final". As pessoas (muitas, a larga maioria) queriam ouvir isso naquela época. Um pouco como o célebre "deixem-nos trabalhar" do Cavaco. O povo queria ouvir isso e deu-lhe depois duas maiorias absolutas consecutivas.

Mas essa jogada - a do Salazar - teve um efeito terrível no plano sociológico e de longo prazo. Porque, na verdade, tudo se discute. E quem não precisar de discutir ou se recusar a fazê-lo deixará de ter que batalhar por aquilo em que acredita. E depois, deixará de saber discutir as ideias que defende. Finalmente, perderá.

E é por isso que eu, embora admire o Salazar em muita coisa e tenha dele a noção de que era homem de superior craveira intelectual e política, não sou salazarista, nem acho possível ser-se hoje salazarista.

Mais: Poderá ser possível uma ideologia ser (mais ou menos) intemporal (isto era outra discussão) e considerar que é possível ser-se marxista, jacobino, democrata cristão ou o que mais se quiser independentemente da época histórica. Mas não é possível isso quando se fala de uma concreta prática governativa. Porque essa está muito mais amarrada ao tempo e ao espaço em que ocorreu do que um conjunto mais ou menos abstracto de ideias.

E o salazarismo - não sendo a adesão a uma ideologia, mas a uma prática - é algo (já o disse) anacrónico por definição. Como o peronismo ou - caso existissem - o Pinochetismo, o Castrismo, o Churchillismo, o Rooseveltismo, o Gaulismo, o Adenauerismo, o Miterrandismo e o Thatcherismo.


E passo a outro tema: as consequências do "isso não se discute".

Esta forma de pensar foi, pelo seu paternalismo, a pior possível, sobretudo para a direita. Porquê? Porque viveu décadas a dizer: "isso não se discute". Resultado (que aliás de há muito que conheço e que só recentemente se começou a desvanecer): a direita portuguesa deixou de saber discutir.

E, com o passar dos anos, quantas discussões políticas, entre amigos ou dentro das famílias terão terminado com o "Porque não. Há coisas que não se discutem." ?

Como argumento não serve. O Portugal dos anos 20/30 já tinha desaparecido. E o dos anos 60/70 era outro País, em que viviam outras pessoas. Assim, no final do regime havia dois tipos de pessoas: as que o apoiavam, e que eram incapazes de discutir porque "isso não se discute". E as que eram contra ele, e que o discutiam.

Eu tive a experiência contrária. Aprendi a ser um "discutidor". Cresci numa época e num ambiente, sobretudo, escolar, em que boa parte do que eu pensava era no mínimo pouco popular. Quer entre colegas, quer, sobretudo, entre professores (todos vindos da faculdade dos anos 60 e todos, ou quase, marxistas). Aprendi que tinha que "discutir", pôr em causa, obrigar os outros a deixarem os lugares-comuns do costume e a terem que explicar "melhor" porque é que diziam o que diziam. E que tinha que o fazer em sistemática desvantagem. Numérica, desde logo, mas não só. Porque discutia, sobretudo, com pessoas mais velhas do que eu.

Mas lá ia discutindo e, sobretudo, obrigava aqueles com quem discutia a terem que arranjar justificações. Sobre porque é que os imensos sovkhozes produziam menos que as pequenas leiras que os camponeses eram "autorizados" a plantar para si próprios; sobre a falta de liberdade no bloco de Leste; a terem, sobretudo, que explicar porque é que esses países não podiam ser qualificados como "ditaduras". E ... já agora ... porque é que havia pessoas a fugir de lá.

E fui eu ... ironias ... que muitas vezes encontrei pela frente o silêncio. Nao era propriamente a resposta "isso não se discute". Era mais a "isso é mais complicado do que parece."

E daqui passo a outro tema, que o post do besugo (também) me lembrou: A (mais recente) incapacidade de discutir da esquerda.

O post do besugo é um clássico. Desconfio que ele não sabe bem o que é que há-de dizer do Salazar. E como nem ele próprio acredita que o homem fosse intelectualmente fraco, ataca-o (literalmente) por baixo. Fala-lhe da voz (mas para dizer que é de capado), do escroto e, mais para o final, ainda mete freirinhas ao barulho. Aproveita também para, num toque de modernidade e urbanidade (e de superioridade, pois), lhe chamar"serrano", para dar dele a ideia de tacanho.

É um ataquezito sem importância ou consistência. Apenas por tal ataque, quase se poderia deduzir que, afinal, o besugo admiraria o Hitler. Afinal, a voz dele enfeitiçava multidões, capado não era (a Eva Braun não se queixava) e não queria saber de padres nem de freiras para nada. E o homem cujos exércitos tomaram (entre outras urbes) Paris, Bruxelas, Amsterdão, Viena, Atenas, Praga e Varsóvia de certeza que não gostava só de serras.

Besugo: desconfio que não te apetece discutir o Salazar, se a discussão ultrapassar o nível do escroto e dos efeitos do seu corte na voz.

Já agora, e para não perder tempo, uma palavra sobre a definição "catolicismo não praticante".

Basta o não ir à missa ao Domingo. Exclui-se, por outro lado, dessa definição o "Deus não existe". E acrescenta-se (sempre dentro do "não-praticantismo católico") o acreditar que Jesus existiu, que era filho de Deus e Deus ele mesmo. Ainda assim não chega (ainda só se é cristão não-praticante). É ainda preciso acreditar que a Igreja Católica foi fundada por Pedro, por ordem de Jesus, e que é portanto a única Igreja que legitimamente representa Cristo como organização humana, e aquela - em consequência - que, por ter sido criada por ordem divina, melhores condições tem para interpretar a vontade de Deus e para guiar os seus fiéis no caminho da santidade.

É obra, isto de ser católico (mesmo que não-praticante). O chato é que poucos sabem isto, e muito menos sabem defender isto discutindo.

Com o besugo, no entanto, desconfio que deve ser fácil discutir este assunto. Basicamente vai dizer que há três tipos de padres: os hipócritas que têm amantes entre as beatas da sua paróquia; os hipócritas que são homossexuais e que abusam dos seminaristas como os bispos abusam deles; os hipócritas que se masturbam a vida toda.

Discussões de escroto, portanto.

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