sonhar mal
“Em sonhos, é sabido, não se morre; aliás, essa é a única vantagem”, disse-me o Sérgio Godinho há quase vinte anos; está bem, Sérgio, então não morremos nos nossos sonhos, mas podemos sempre morrer enquanto estamos a sonhar uma coisa qualquer, tanto assim é que conheço muitos casos de pessoas que acordaram mortas, ou então despertaram com mortos ao lado, o que vai dar no mesmo. Esqueci-me de te dizer isto, ó Sérgio, digo-te agora.
Por causa do cheiro das tintas.
Quando eu era mais novo, ou seja, quando eu era novo (sim, que isto de dizer apenas “quando eu era mais novo”, quase subentende que poderia ter sido anteontem, ou na Páscoa do ano passado, ou mesmo em Outubro de 1997), cheguei a interessar-me pela “interpretação dos sonhos”.
Quer dizer, não cheguei mesmo a interessar-me por essa pastelada, mas, nesses tempos, tempos difíceis, tinha algumas amigas e conhecidas - que frequentavam, aliás, quase todas, a Faculdade de Letras, ou então militavam no ensino secundário com pretensões a penetrar nas Letras, dá no mesmo, o que faz com que, ainda hoje, injustamente - suponho -, eu associe a Faculdade de Letras a uma espécie de “Escola Subneuronal do Esoterismo” e, ainda mais do que isso, faz com que não consiga pensar na Praça da Galiza sem me rir e sem me lembrar de pedrezes e outras aves de quinteiro –, dizia eu que me dava, nessa altura, com raparigas que gostavam de abordar esse e outros temas, com outros rapazes e comigo, mas agora interesso só eu e este tema, a interpretação dos sonhos, e eu, palavra de honra, não é que bocejasse pouco, mas lembro-me de as coisas se passarem mais ou menos assim, dentro da minha cabeça, querem ver?, era mais ou menos assim que se passavam: “olha, cheiras tão bem, entre outras coisas que agora não interessam, de maneira que continua lá a falar dessa merda dos sonhos e não páres; não páres sequer de falar”, e lá ia escutando, tendo – por uma espécie de osmose táctil-olfacto-enxergativa – memorizado algumas coisas sobre a matéria.
Isto é bacoco. Eu considero isto uma pústula na minha vida académica, mas também a minha vida académica já passou há muitos anos e, portanto, não vou agora empanturar-me de antibióticos, nem lancetar a memória, só à conta dum abcesso antigo e calcificado.
Isto vem a propósito de quê?
Bom. Isto vem a propósito de eu andar a “sonhar mal”.
Sonhar mal é ter pesadelos?
Não. Não é bem a mesma coisa.
Um pesadelo, um pesadelo mesmo, eu sei o que é.
Um pesadelo é, por exemplo, quando sonhamos que nos morre alguém e acordamos desesperados, a chorar de pena; ou quando Morfeu nos manda uma espécie de SMS a vomitar que o Sporting perdeu com o Fátima em casa, e despertamos num espumar de raiva vingadora; ou, então, quando sonhamos que estamos no altar, naquela erecção desconfortável e engomada do fato e da gravata, ansiosos na espera duma noiva que se demora e – exactamente quando começa aquela música maluca da marcha nupcial – vemos penetrar o templo, conduzidos pelo Professor Aníbal Cavaco Silva e pela sua Mulher, em rancho alegrete, a Sra. Dra. Maria Barroso, a Sra. Dra. Odete Santos, o Sr. Manuel Luís Goucha, a Sra. Dra. Zita Seabra, o Sr. Nicolau Breyner, aquela Sra.D. Pipinha que o Sr. Nicolau Breyner lançou para as pantalhas, a Sra. D. Lili Caneças, o Sr. Manuel Cajuda e, ainda, um senegalês de duzentos centímetros de comprimento por cento e vinte quilos de peso, todos eles e elas de mãos dadas, elas e eles e eles e elas, todos e todas de vestidinhos aos folhos e de rendinhas, todas e todos a avançarem para nós de olhos gulosos, as rendinhas e os folhos a roçagarem o soalho por onde nos apetece escapulir para outro inferno qualquer, este Carnaval todo com uma menina possuidora dos traços fisionómicos da Sra. Dra. Manuela Ferreira Leite à frente, uma criança alternativa a marchar naquele passo da soldadesca da ex-URSS, sendo portadora de cestinha de alianças reluzentes, grossuras variáveis, onze ao todo.
Isto são pesadelos.
Sonhar mal é diferente.
Sonhar mal é isto a seguir.
Sonhar mal é haver uma espécie de Congresso de tipos vestidos de fato preto e com óculos escuros, mas que não são assim tipo Matrix, são diferentes, um bocado sebosos, tipos esses que se deslocam em carrinhas celulares de cor cinzento-aço pela minha cidade, sendo aplaudidos pelo povo inteiro nesse seu tonto circular - mas durante pouco tempo, curiosamente, porque rapidamente vai tudo à sua vida - e, sem que se entenda porquê, eu começar a notar que os tipos de preto me olham com ar implicativo; e é eu meter-me no carro e derrapar dali para fora, sem medo, mas com uma sensação de bizarria semi-assustada, que não é bem o medo, e aperceber-me de que me perseguem, de facto; e eu acelerar cada vez mais, até os despistar, estacionando depois à porta de minha casa, apercebendo-me, nessa altura, ao sair do carro, que sou possuidor dum Porsche; mas que esse Porsche, sem deixar de ser um Porsche, está pintado de vermelho e de cor-de-laranja, e tem um ailleron traseiro roxo, com leitor de CDs incorporado, o que me fode a auto-estima (e, como toda a gente sabe, a auto-estima é aquela parte do ego masculino que depende largueiro da viatura que se possui, nem que seja em sonhos).
Eu interrompo agora a narrativa para explicar que não sei, sequer, se isto que narro é apenas um sonho ou se é, em alternativa, uma sucessão deles. Sei é que “os maus sonhos” – não é “os pesadelos”, eu aqui tenho de ser muito explícito, é “os maus sonhos” -, vistos de fora, olhados “acordadamente”, tendem a encontrar uma espécie de fio condutor que nunca teriam enquanto acontecem, e que esse fio condutor lhes confere uma bizarria que nos pasma um cisco. E sei que, sendo apenas um sonho ou sendo um ror deles, nesse caso entrecortados por despertares incompletos, estes sonhos são o que são: são “sonhos maus”.
E aproveito também para contar que, quando ainda era muito mais novo, era muito novo mesmo, estava mesmo por estrear, sonhava muito repetidamente que me tinham dado uma bicicleta, uma Vilar com três mudanças, só não tinha marcha-atrás, era tipo “Chopper” - mas não chegava a ser uma “Chopper”-, e, puta que pariu o sonho e a bicicleta, a Vilar tinha pneus de veludine: travava muito mal.
Eis que os tipos de preto me topam novamente e eu resolvo não entrar em casa, para não descobrirem onde moro, e arranco novamente no meu Porsche, chegando, numa vertigem instantânea, à descida da capela do Cruzeiro onde, do lado direito, fico pasmado diante duma discoteca nova que não havia ali e, curiosamente, passa a ser de noite.
Passa a ser de noite mas vê-se bem lá para dentro, está tudo alumiado de luzes lilases, claras, donas de transparências aniladas, e a mobília é toda de metal cinzento, e os tipos de preto estão lá dentro, um gang-bang seboso e preto, a dançarem "slow" uns com os outros, eu a ver do carro, “olha que paneleiragem”, mas eis que os tipos de preto me vêem novamente e saem, aos baldões, atrás de mim, sempre calados, sem um som, eu já chateado com esta merda toda, “então estes caralhos estavam atrás de mim, agora já não estavam, pelos vistos, andavam era no roço e aos amassos uns aos outros dentro daquela merda lilás, e agora já estão outra vez atrás de mim, caralho, mas por alma de quem?”, fujo novamente, mas já nem sei se ainda tenho o Porsche, sei que aquilo andava bem na mesma, e deparo com o meu pai na zona do antigo sinaleiro, saio do carro e digo “ó pai, resolva-me isto”, e ele deve ter resolvido, que nunca mais vi os tipos de preto – nem o Porsche, mas a esse devo tê-lo vendido bem.
Até aqui tudo bem, estou mesmo a ver alguns entendidos e entendidas (mesmo sem formação na Faculdade de Letras) a rosnarem “pois, está bem, lá vem este caralho com o velho e estereotipado sonho dos gajos de preto que tendem simultaneamente para a homossexualidade e para a perseguição, já vimos isto”. Está bem.
O pior é quando, logo a seguir, dou por mim dentro dum edifício de seis andares – e eu sei que eram seis andares, não sei por quê, mas sei – que parecia o El Corte Ingles de Gaia, sim, mas com escadas antigas. Não havia escadas rolantes, tinha de ser tudo na base do galganço a penates, e o chão era alcatifado, uma alcatifa reles; e tinha, naquela estrutura híbrida, também, semelhanças com os antigos Armazéns Marques Soares, no Porto, em 1973. Mas vim a saber que, afinal, estava dentro da Maconde, também não sei como descobri esta merda, que se foda, e que andava eu lá a fazer?, pois é, eu sei, agora já começam a perceber melhor a diferença entre “pesadelos” e “sonhos maus”, eu sei, eu conheço-vos bem, pois fixem-se nisto: eu andava, acima e abaixo, a experimentar, num ritmo frenético de emergência, equipamentos principais, fardamentos alternativos - e, mesmo, fatos-de-treino - do Newcastle United.
Pausa.
Esta pausa é para vos permitir irdes buscar um agasalho, que eu sei da frialdade angustiada que se apossou de vós neste preciso momento. Ide. Eu já retomo o fio narrativo com o episódio do circuito de karts do Hospital de São João, prova em que me vi empenhado imediatamente após ter acabado de adquirir, na Maconde das Carmelitas, umas calças de ganga à boca de sino. Macjeans, presumo.
Já voltastes? Sede bem revindos.
A prova era complicada, sendo que a recta da meta era em frente à porta principal do piso 1 do Hospital de S. João, onde ficava em tempos o bar pequeno, e a recta oposta ficava cá em baixo, evidentemente paralela à recta da meta, mas com um desnível de cerca de 15 metros de altitude. O circuito era, pois, tudo menos um circuito. Era uma quadratura desnivelada, melhor dizendo, era uma “rectangulatura” desnivelada, sendo que se subia para a recta da meta e se descia dela para a outra recta por aquelas rampas que, quem conhece o Hospital de S. João, ou mesmo o de Santa Maria, bem sabe: uma sobe, a outra desce, tudo isto no sentido dos ponteiros do relógio, sobretudo se a vida for apenas andar às voltas num Timex rectangular.
Dada a partida, eu, que estava bem posicionado no meu capacete preto, percebi logo que regressara ao ciclo preparatório: eu guiava, com impulsos treinados de mão, um pequeno Porsche da Matchbox, decorado com pratas de chocolate, ali coladas à maneira, vermelhas e cor-de-laranja, na pista desenhada por mim e pelo resto da canalha da velha Escola Técnica, junto ao muro, perto da rede que separava a escola do resto do povo, sendo que o fiscal de pista era um contínuo, o Senhor Reboredo, todo de preto, seboso, de óculos escuros.
Podeis sair. O ponto é amanhã, mas sonhai bem.
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