Com que então alheira, hem?
Depois de MP me chamar alheira sinto-me em estado de charcutaria.Tenho atenuantes: eu já tinha lido algures isso da cadeia dos livros e não reparei que MP tinha invertido a questão.
Para me sentir, de facto, reconciliado com MP, com o mundo inteiro, e para poder - enfim - regressar ao estado piscícola que mais me convém, preciso de fazer uma coisa. Vou fazê-la. Vou fazer aqui uma mistura de grelos, que é verdura que tanto vai bem com alheira como com besugo.
Parágrafo único - Os livros e autores que mais me marcaram, seja lá pelo que for, ao calhas, com breve explicação do facto, e só durante meia hora que não tenho mais tempo e seja o que Deus quiser.
a) Lobo Antunes, António: marcou-me pela cisma que tem com Benfica e aquela zona que ele acha bucólica, a estrada de Benfica, o Benfica propriamente dito e, ainda, pelas referências repetitivas à guerra de África - é suposto, em cada repetição, ficarmos admirados por ele ter detestado aquela merda, até porque é sabido que noventa por cento dos gajos que lá estiveram adoraram aquilo -, pelo facto (explicado sessenta e seis vezes) de se sentir mal em hospitais (ao ponto de não trabalhar, que se saiba, há imenso tempo, num, embora o internamento possa ser uma alternativa ) - e, ainda, ao facto de já ter sido loiro e de lho terem dito várias gajas que, supostamente, comeu, em vários livros, ou que, se não comeu, queriam que ele as comesse.
b) - Ham (autor do tratado "Ham´s Histology"): Este cabrão consumiu-me tardes e noites de marranço sobre merdas que, aos dezanove anos, mais dado a ver se comia tantas gajas a sério como o Lobo Antunes sugere que papou em livros, quase me fizeram enveredar por outro curso qualquer. É ele o responsável por, ainda hoje, detestar microscópios. Se bem que me seja afirmado - desde 1980 - que a culpa de confundir uma célula de Leydig com um dendrito é toda minha, porque é como não distinguir um bocado de encéfalo dum colhão, ainda hoje culpo Ham pelo que me sucedeu, que foi ter de repetir a porcaria da disciplina. Ham marcou-me, mas se eu pudesse e fosse seu contemporâneo, quem o marcaria era eu, na cornadura.
c) Torga, Miguel. O doutor Adolfo. Eu aqui nem explico.
d) de Queiroz, Eça, esse fazedor de cócegas, esse génio da brincadeira das letras e das ideias feita com as ideias e com as letras, por mais tontas que parecessem ambas, esse poveiro de Tormes que só se espalhou ao comprido - o animal - na Cidade e as Serras: porque lhe deu para fazer, nesse livro seboso, de Verne, Jules.
e) - Hugo, Victor. Eu este, ultimamente, já nem leio. Oiço-o. A lolita sabe do que falo.
f) - Maugham, Sommerset. "Of human bondage". Quem não leu, vai a tempo. Quem leu e não gostou, que se meta menos nas pastilhas.
g) - Mann, Thomas. A minha montanha não é tão mágica como a dele, mas eu também sou suspeito, isto porque via quase todos os episódios de "Uma casa na padaria", embora me cheguem relatos - certamente torpes - de que o falecido Michael Landon habitava uma pradaria, e não um estabelecimento de confecção e venda de produtos panificados.
h) - Orwell, George. Pelo "Triunfo dos porcos", que sempre me pareceu conter mais do que o porco nazi Orwell lá quis meter. Pareceu-me sempre que os porcos comunas que ele ali pintou, os porcos de comité, iriam - noutro livrinho - ser comidos pelos porcos capitalistas e neoliberais que os destituiriam, e que, depois o ciclo se repetiria. E tenho razão, que eu sei: o "Triunfo dos Porcos" é uma versão unidimensional e unilateral do "História Interminável", porque foi escrita por um visionário que via só dum olho, ou parecia, mas marcou-me porque o li quando também só pensava com o que tinha dentro das bolsas escrotais, e nem um olho era.
i) - Sepúlveda, Luís. Basta ter explicado a diferença entre cripsis e aposematosis a uma besta como eu para uma besta como eu se sentir marcada por Sepúlveda, Luís.
j) - Camões, Luís. Marca-me muito o facto de ter ficado ciente, desde cedo, que nunca iria ler aquilo tudo dos Lusíadas. E ainda hoje me penetra a ideia de que aquilo, musicado pelo José Cid... Enfim, cala-te boca. É mais ou menos o tipo de marcação que sinto perante a obra de Graça Moura, Vasco, mas com uma nuance: deste, nunca lerei merda nenhuma.
l) (ou k, freguês) - Pessoa, Fernando. Sinto-me profundamente sulcado no meu envergonhado lombo por ter de admitir, aqui, que este frágil e grácil e divergentíssimo ser humano, já falecido e poeta lambidíssimo nas suas quatro anilhas, só me não entedia em meia dúzia de textos. Marca-me, isto, tenho cicatrizes em mais de quatro por cento da minha superfície corporal (ou seja, ainda bem que não é nos genitais, quando não lá estariam desfeados mais de trinta por cento da minha virilidade).
<< Home