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16.9.07

Episódios não são epidemias, descansem

O primeiro episódio não tem graça nenhuma. E é aquele que eu acho que já contei uma vez. O segundo também não tem, mas acho que nunca contei.

Eu, uma vez, era o defesa direito da equipa do segundo ano de Medicina. E jogava-se importante jogo para o campeonato dos mal-aventurados, no campo do CDUP, que era relvado porque chovia muito e a erva ali medrava: mais ou menos como sucede hoje, mais de vinte anos depois.

Era o segundo ano contra o quarto, no quarto ano até jogava o Zé Leal, central do Paços de Ferreira (ou do Paços de Brandão?, do São Pedro da Cova?, do Candal?). Bom, respeito, era um central de nome, segunda divisão. Ou terceira, eventualmente. Não importa.
Eu era do segundo ano.

O ponta esquerda dos tipos do quarto ano, que agora é anestesista algures na Guiné, era o Veríssimo. Tinha uma habilidade fantástica e, nessa tarde, nos primeiros trinta e cinco minutos, só lhe faltou dar-me a bola para as patas apenas pelo prazer mórbido de ma tirar outra vez delas.
A dada altura pensei: "Vou passar a tarde a ver o número 11 nas costas deste filho da puta e isto não pode ser, foda-se o caralho do preto! Aquela colega bonita, que parece a Miriam Lambert, aquela do Dancin’ Days, ou do Astro, não me lembro - era um tempo de novelas brasileiras mágicas, das primeiras que se viram , ainda nem havia televisão a cores, só em 82 é que houve, é preciso saber isto - está a rir-se de mim a bandeiras despregadas, na bancada! Ai deste-me outro nó cego, ó preto do caralho? Perfeitamente. Agora levas uma pandeirada que até chias”.
E levou.
E tive, ainda, de lhe dar mais uma ou duas marretadas, até o árbitro (complacente quintanista, não me lembro do nome dele, tenho pena, ele também deve lamentar não se lembrar de mim) me mostrar o amarelo, com um aviso de “então, pá!, andamos aqui para esta merda?, vê lá isso…”.
Nessa altura, eu já tinha referido ao Veríssimo que me parecia não estar ele ciente dos riscos que corria, e que - provavelmente - ia forçar-me a fracturar-lhe uma das gâmbias, e que mais lhe valia, em sendo assim, mais lhe valia a ele, ficar sossegadito... ou mesmo passar para a ponta direita, onde, afortunadamente, eu não estava. Nem estaria.

Ele só se ria, com aqueles dentes brancos que apenas os pretos têm, e com aquele jeito de "faço de ti o que quero, ó besuguito da bosta", que era a verdade, as verdades doem mas não deixam de o ser. O Veríssimo marcou dois golos e, se dependesse apenas do baile que me deu, podia ter marcado o triplo deles.
Eu, por acaso e muito afinco, aí pelo meio da primeira parte, atinei com a finta dele, e até consegui marcar o 3-2 com que ganhámos o jogo, perto do fim, até porque não fumava muito na altura, e o Veríssimo deu o estoiro monumental dos fumadores compulsivos, já na altura era isso, fumador compulsivo de dentes muito brancos, calhares de fumos. E não passou por mim uma única vez, no segundo tempo. Mais do que isso, deixou-me aquele campo aberto à minha falta de talento, disfarçada pela ausência do talento dele, de tal maneira que luzi um pouco, o suficiente para receber aplausos de bancada.

Moral da história? Sei lá, apeteceu-me contar isto, não ando aqui para fazer moral. Não ando aqui para fazer coisa nenhuma, aliás. Isto foi assim e assim contei.

O segundo episódio também não tem grande graça. Até não tem nenhuma, mesmo. Mas passa-se no CDUP, como o primeiro. E sempre no segundo ano, valha a verdade.
Para nos emprestarem chuteiras, no CDUP, que ainda não as havia prateadas, nem douradas, nem doutras cores, eram todas pretas e engraxadas, tínhamos que apresentar o cartão de estudante. Ora eu, naquele dia, não o tinha. E jogar de sapatilhas, na relva, equivalia a passar mais tempo deitado no chão do que na pugna.

Impõe-se aqui um interlúdio. Um entremez. Gosto muito da palavra pugna, lida por castelhanos, sobretudo aplicada a questões envolvendo o segundo ano de medicina.

Ora bem, impunha-se que alguém me emprestasse o cartão de estudante. Alguém que o tivesse. Era premente, derivado às chuteiras. E um dos colegas que tinha cartão de estudante disponível até ostentava cabeleira igual à minha, naquela altura (era o tempo em que Mario Kempes brilhava na selecção argentina!), na vida e no cartão.
Com o cartão dele, lá pude jogar de chuteiras emprestadas e engraxadas.

Penso que não tive qualquer influência no resultado desse jogo, até nem me lembro bem dele.

Lembro-me é do colega em questão, ficámos mais ou menos amigos, nessa altura, uma simpatia de ocasião que depois sofreu do míldio do costume, não calhou evoluir e perdurar, já não sei dele há muito tempo. Chama-se Carlos Morgado, foi médico da UNITA, em Angola, esteve muito tempo preso e doente, há uns quinze anos, com grave infecção no corpo, por causa duns tiros que lhe deram. Mas agora cuido que está bem. Escrevi postais ao MPLA e tudo, a pedir por ele.
Fui sempre de pedir. Peço sempre mal, peço como sei, mas ele estará bem, se Deus quiser.

Lembrei-me agora disto porquê? Não sei, também.
Prometo não contar mais coisas destas. A não ser que me apeteça.

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