blog caliente.

23.11.05

Tudo junto

A Teresa vai fazer uma TC amanhã, para ver se está pior. E deve estar. É um exame que não lhe vai doer e que lhe pedi para ter a certeza de que ela está pior daquilo que eu penso que está pior, e não doutra coisa qualquer. É importante, perante as nossas impotências, termos a certeza delas. Não há nada pior do que esta hipótese assassina de "poder haver outra coisa qualquer por detrás disto, que eu não estou a ver agora, merda!", essa possibilidade quase mágica de se poder fazer alguma coisa diferente, mesmo que isso nos confronte com o erro e nos obrigue a morrer, também, um bocadinho mais, por nos questionarmos na nossa (in)certeza: é o menos que se pode fazer com quem nos morre, percebermos-lhes a morte e levarmos aquela merda infame de nos morrerem a sério, embora pressintamos que não vai acontecer o mesmo connosco, quando formos nós, não sabemos bem porquê, é como se se nos acabasse a magia toda, é verdade.

O Ezequiel, não lhe bastando o que já tem, arranjou agora uma dor no ombro, que me parece ser "mais do mesmo". Vamos a ver se lhe tirei a dor, de hoje para amanhã, na certeza de que me morrerá em menos de um ano. Isso garanto. Quase. É um caso menos "florido", menos dado a dúvidas. Ele é que as tem, que não percebe quão ligados andam os seus problemas, os de agora, ao que teve primeiro, nos intestinos. A TC ao ombro não adiantou: diz o colega que sim, que pode ser tudo aquilo que eu lhe coloquei como hipóteses, na requisição. Muito obrigado, vale a pena esta defesa "em linha", nunca se falha. Foda-se o fiscal de linha! Não fico feliz, excepto se lhe tirar a dor. Vai-se num ano, o Ezequiel. Menos, talvez. Talvez um ano, sim. Já vi que tem aquela força absurda dos rústicos: se não souber que se vai lixar em breve, aguenta-se. Se souber, fina-se encolhido, deixa de aparecer e, por fim, vem no jornal da terra, com a cara de quando era novo.

O Teixeira dura menos. Não tem estrutura para se adiar. Entra com a mulher e faz os tratamentos já com ar de enterro. Não sei. Não sei. Alguém lhe disse, ou eu me escondi mal no meu sorriso de imbecil e ele leu-me na fundura da fachada. E a mulher sabe no peito o que ele tem, que o ama: vê-se bem que o ama, que está sempre ali, fechada e junta.

A Sandra, a tonta, diz que já não vem amanhã. Se estiver enjoada, não vem e "quero que se lixem todos!". Está bem, levou hoje dose boa, vai aguentar-se, acredito que arrebita, mas vai dar o trabalho e a canseira do costume: já quando foi da primeira vez fez tropelias e eu disse, hoje, que lhe mando a guarda a casa, se me faltar. Olha-me com cara de desafio, rabina de merda, como se perguntasse: fazias-me isso, tu? E eu fazia, sei lá, acho que fazia. Ela tem 28 anos e um filho, fazia? Não fazia nada.

E o Correia? O Correia não sei. Já o vi por-se de pé meia dúzia de vezes, nos últimos dois anos e meio, mas, desta vez, parece-me caído de mais para ainda vermos, juntos, o Sporting fazer coisa de jeito. Acho que se vai, se não for da doença vai da cura. Que imbecilidade de frase, não é assim, mas quase que parece. Às tantas é, que é o que costuma acontecer com as coisas que parecem muito.

A Clara não está pior da falta de ar, mas insiste que não quer tirar a mama. Não que se pudesse (ou que adiantasse) tirar-lha agora. Mas insiste em que nada se faça, a termos de lhe tirar alguma coisa, senão tirar-lhe a falta de ar, e ela diz que está melhor dela, embora eu ache que não está, mas acha ela, quem manda aqui, merda?, é ela, pois. E eu? Eu, nada.

O Cândido vai morrer lentamente e "fivelinhas", pele e osso. Pressente-se-lhe a lentidão em tudo, há muito tempo, até na morte que há-de vir, devagar e consumptiva, degradante, cheia de escaras espalhadas: a negação do corpo traduzida em chagas.

Quando calha haver vários assim, ao mesmo tempo, vamo-nos abaixo do pescoço. E pensamos que somos nós que estamos mal, que o sofrimento é nosso. Depois, alguém nos abre os olhos e nos diz uma coisa simples, que pouca gente se lembra de dizer: "tu és bom médico", "olha que tu deves ter feito o que devias fazer, que eu sei que sim", e não é que se sofra menos, não é que a dor funda se vá embora, mas parece que se sofre diferente, percebe-se outra vez quem são os "artistas" destes filmes de merda a que assistimos e sentimos alguma vergonha por termos andado enganados a pensar que éramos nós. Para o bem e para o mal, não somos. Ao menos isso ainda não somos.

View blog authority