blog caliente.

3.11.05

Os putos

Fomos vê-lo e ele estava a respirar bastante mal. Lentamente, com pausas. Cheyne-Stokes. Olhei para o puto, que estava ali comigo, preocupado, debaixo da bata nova. Gostei de o ver ali, quase de bibe.
Faz-se. Tem fibra. Já fui interno e sei ver.

À cabeceira do moribundo estava a mulher e uma amiga. Nos olhos da mulher estava a seca doçura que sucede às lágrimas. É comum, nunca vos aconteceu? Fica a doçura, mas fica seca. Solidifica no desgosto. Nos da amiga não sei, não consegui ver, nunca se vê tudo.

Saímos e, lado a lado, demos a notícia. Eu a falar, ele com os olhos. Topei-o: estava aflito. Não sei se já teria visto morrer alguém assim antes, tão junto dele.
Sei que ele não sabia passar a certidão de óbito, aquele papel que permite os enterros. Disse-me que não sabia. Ficou a ver-me preenchê-lo e disse-me, do fundo da circunstância, que "é isto que nos espera, é isto que somos...".

Começamos sempre por dizer trivialidades por não sabermos dizer mais nada. Depois, aprendemos a preencher os papéis e, sem darmos por isso, estamos prontos a continuar a dizer trivialidades pelo mesmo motivo. Mas a caneta ajuda, dá-nos um ar de desenvoltura sábia. E, ao menos enquanto escrevemos, enquanto somos pedagógicos, justificamos o bocadinho de silêncio que nos apetecia que durasse mais.

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