O voto inútil
Os tempos são de mudança. Numas quaisquer eleições até há pouco tempo atrás, podia pensar-se em três tipos de votos, se analisados do ponto de vista da intenção: o voto coerente (daqueles que votam sempre no mesmo partido porque até parecia mal votar noutro), o voto convicto (daqueles que votam no partido que lhes assegurou aumentar o rendimento mínimo, atribuir pensões aos ex-combatentes ou repor os benefícios fiscais; ou daqueles que representam o eleitorado fiel do PCP) e, finalmente, o voto útil: o voto típico de um final de legislatura em que o partido governante está queimado como um tição, ou de uma segunda volta de umas presidenciais em que a alternativa se coloca entre o insípido e o mau. O voto útil consiste numa manifestação do instinto de sobrevivência; como instinto que é, nada tem de racional ou de reflectido. É um voto contra o perdedor, mas com efeitos colaterais que determinam que ganhe o vencedor (com perdão da redundância).Há sinais de que existe, agora, um quarto tipo de intenção de voto: trata-se do voto que pressupõe um aturado itinerário de reflexão através do qual o eleitor vai excluindo hipóteses possíveis. O eleitor começa por rejeitar o partido a que se sente ideologicamente mais próximo, sobretudo porque é o partido que governou na legislatura finda. Numa situação normal, esse raciocínio levá-lo-ia a lançar mão do voto útil. Porém, também não lhe agrada o voto útil no maior partido da oposição, porque o maior partido da oposição (bem como o futuro primeiro ministro) lhe parece assustadoramente parecido com o anterior. Sendo assim, rejeita-o também. O percurso pode ser o inverso: importante é reter que não vota em nenhum dos dois porque ambos são bastante mais convergentes do que divergentes.
Passa, então, aos partidos satélite, os partidos aparentados com associações de amigalhaços que vão navegando ao sabor das correntes e das possíveis coligações. O eleitor em reflexão pode, por vezes, assombrar-se com a verborreia intencionalmente marcante dos retóricos desses partidos; se assim suceder, o seu percurso de dedução lógica acaba aqui. É o que sucede com quem vota como quem compra o detergente que lava mais branco. E é assim que, à esquerda e à direita, os tais partidos satélite vão conseguindo manter dois-a-três assentos no parlamento.
Mas há eleitores mais exigentes e menos permeáveis ao estardalhaço propagandístico. São aqueles que têm o saudável hábito de mudar de canal nos intervalos dos filmes e aos quais, por isso, é indiferente a marca do detergente, desde que lave bem. E, aqui chegado no seu percurso lógico-dedutivo, o eleitor desilude-se. E, então, de três uma: abstém-se, vota em branco ou vota mesmo. Se se abstiver de votar, resolve, ainda que por omissão, o seu dilema. Se decidir votar, porque quer forçosamente votar e entende que para votar em branco lhe bastaria abster-se, o que lhe resta?
Nesta fase final do processo de decisão o eleitor já excluíu a maior parte das alternativas possíveis, mas continua exigente e continua a querer forçosamente votar. Porém, quer votar num partido que não lhe recorde a bagunça político-aparelhística dos partidos que antes rejeitou. E pensa, assim, num partido que, ainda que anacrónico e rígido, se mantenha próximo do ideário que o viu nascer e que, ainda que inaceitável como partido governante, continue a ser útil e consistente como oposição. Curiosamente, um partido cujo líder, embora fossilizado no discurso, exortou os eleitores a recusar o voto útil.
Não parece lógico, isto? O voto de quem votar assim é um voto perfeitamente inútil. Mas é, seguramente, mais lógico do que qualquer voto útil. Não é um voto convicto, o que é mau. Mas sempre permite evitar arrependimentos tardios e, mais importante do que isso, ajuda a espantar a poeira.
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