Fidel, Maquiavel, Moral e Rivero
A minha opinião sobre a (in)flexibilidade de Fidel Castro mereceu duas notas: uma do João Tunes que, aparentemente escandalizado, se apropria de uma exclamação famosa do teatro de revista, tão famosa quanto genérica, tão genérica quanto vazia. Mil perdões, João Tunes, mas o teatro de revista sempre me deu uma certa náusea. Parece que, nos tempos da ditadura, a revista tinha função preponderante, por satirizar os então poderosos de forma tão hábil que escapava à censura; lamentavelmente, eu só adquiri consciência de mim depois do 25 de Abril, de modo que só conheço o género no estado decadente, desinspirado e, não poucas vezes, roçando o claro mau gosto.A segunda nota veio do JPT, que quis confrontar-me com as minhas contradições. Acusa-me de estar "no cimo de tanta moral", defendendo quem defende princípios esquecendo os meios. Maquiavel, Fidel, a sua possível compatibilização. Tudo à molhada. Pelo menos assim percebi.
Faça-se justiça à memória de Maquiavel: ele não quis dizer aquilo que eu disse quando falei das trapalhadas do Presidente e que toda a gente se habituou a dizer. Quem conhece, ainda que pela rama, a sua obra sabe que Maquiavel criticava a tirania imparável dos principados italianos do seu tempo e que defendia a unificação da Itália, sob a égide de um monarca que subjugasse esses príncipes fosse como fosse, desde que o fizesse para defender os interesses do povo italiano. Donde, os fins justificam os meios - frase que, provavelmente, ele nunca proferiu.
Passando a Fidel. A figura de Fidel, tendo em conta a sua história e a história de Cuba, é-me simpática e eu explico porquê. Nos remotos anos cinquenta do século passado, Fidel não desistiu enquanto não correu com a minoria de americanos que, com a protecção do Fulgêncio que fugiu à frente, sacavam de Cuba tudo quanto podiam. Ódio dos americanos? Provavelmente. As décadas seguintes mostraram, também, o reverso: a lição americana, prontamente dada a quem ousa desafiá-la. Fidel devolveu Cuba aos cubanos; ao perder Cuba, os americanos ordenaram o seu esquecimento. Tristes e sinistros poderes, estes. Os mesmos que mundializam tanto que só tempos depois notamos que já nos tornamos dependentes deles, sobretudo a quem recusa tomar consciência disso.
Mas, mau grado o bloqueio, mau grado a miséria, mau grado o afastamento, mau grado a poderosa prepotência americana que os destroça, Fidel e Cuba mantiveram-se - mantêm-se - independentes. Agora sós, agora que os regimes comunistas de leste (os fétiches do Alonso) se desmantelaram. Fidel, o orgulhoso Fidel, só cedeu quando quiseram falar com ele. A isto, chamam uns passadismo, obsolescência, alucinação. Eu, a isto, chamo só coerência.
Mas calma. Eu só disse que lhe chamo coerência, não disse que acho que está bem assim. Sosseguem os espíritos, João Tunes e JPT. Não se deixem levar pela simplória, mas eficaz, estratégia americana recorrente: ou estás comigo ou estás contra mim.
Posto isto, esclareça-se: o que é Fidel? Fidel é um ditador. Oprime vontades, opiniões, destinos. Fidel elimina os resistentes, prende os opositores, executa os dissidentes. Tudo isto é verdade. Fidel está obsoleto? Não tenho tanta certeza nisto, mas dou de barato.
Fidel também não perde de vista nem a defesa de Cuba (exacerbada? talvez), nem que Cuba não está à venda. E que ele também não está. Fidel é torcido, obstinado. Corajoso.
Não me agradam manifestos para a defesa do que quer que seja quando se misturam as circunstâncias nefastas com as qualidades de quem as provocou. Não me agradam moralismos lineares; prefiro pensar sozinha, no remanso do lar, a ler a mais e a deixar-me intoxicar de propaganda. Tento, isso tento.
Mas cada um defende o que quer e como quer, ainda que esteja a pintar a mais para esquecer o que sabe. Eu prefiro registar - e registei com agrado - que Fidel libertou Raúl Rivero e outros presos políticos conversando. Saliento, aliás, para quem não se lembre, que o próprio Rivero agradeceu a Espanha os bons ofícios que levaram à sua libertação. Ele mesmo, que deve odiar Fidel.
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