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25.10.04

Histórias pequenas

Decididamente, não devo explicar-me bem. É a segunda vez que noto isso hoje.

Uma pequena história que aqui deixei ontem mereceu-me, do Ma-Schamba, algumas invectivas sobre o obscurantismo da profissão médica, uma (quase) ameaça de enxovia, um manifesto de "como médico não te queria" e uma maldição. A propósito da mesmíssima historieta, o Água Lisa, tirando a maldição e a ameaça de cadeia - vá lá, ter-se-à contido - (e uma coisa sobre um capelão cuja batina não vejo que me sirva) atira-me mais do mesmo, tudo misturado com um frango mentiroso qualquer. Eu sobre isso do frango não digo mais nada, já disse o que tinha a dizer ali abaixo: não era disso que se tratava.

Agora, sobre a minha pequena história, digo só mais isto: o César, que não se chama César mas que está doente, nunca me perguntou se vai viver muito ou pouco tempo. Se me perguntar, um dia (acabam sempre por perguntar) eu dir-lhe-ei a verdade que sei, da maneira que me parecer, na altura, que ele quer sabê-la. Sem saber, obviamente, se estarei a dar-lhe a melhor resposta, a resposta certa. Há muito de "parece-me que" em tudo aquilo que não é ciência exacta (há quem lhe chame obscurantismo, a este não ter bem a certeza, mas eu admito que Sócrates não esteja na moda).

Para já, o César tem a resposta que tem querido ter. Bastava terem mesmo lido o início daquela pequena coisa que eu escrevi para que vos ficasse ao menos isso, claro e plácido na sua calma limpidez. Ora releiam, se quiserem fazer o favor: "O César está cheio de medo de estar mesmo doente. O pior é que está, de facto, muito doente. Julgo que sabe, no fundo; acho que até lhe palpita, mais ou menos, o que o espera. Só ainda não encontrou nos meus olhos a verdade que lhe escondo, nem no fundo de si a resposta para o que evita perguntar-se."

O tempo e os anos são bons conselheiros. Fui aprendendo que nem toda gente que trato carrega cestos vindimos e se chama César. Que há pessoas que, com legítimo direito, me perguntam de olhos nos olhos, com impressionante firmeza, "vou morrer? quanto tempo?". E aprendi, também, que algumas dessas pessoas, após uma resposta directa, tão directa como a pergunta, uma resposta plena de informação e de percentagens, emudecem e ficam profundamente tristes, ou indignadas, ou ambas as coisas (o que também é legítimo, note-se), logo a seguir. No Vemos, Ouvimos e Lemos conta-se, aliás, um caso que não se afasta grandemente do que acabei de afirmar.

Eu terminei aquele desengraçado escrito de ontem dizendo que "quando for a minha vez, César, se chegar a ser, não me enganarão nunca como eu te faço a ti. Consola-te comigo. E insulta-me sempre que te sentires pior, eu não tenho culpa mas também não sei muito bem que mais hei-de fazer connosco".

Desejo que nunca chegue a vez do Ma-Schamba, nem a vez do Água Lisa, cruzes canhoto. Como gostaria que não chegasse a minha, evidentemente. Mas não consigo deixar de invejá-los a ambos por saberem tão bem aquilo que quereriam saber, se a vez deles chegasse. Eu tenho dúvidas. Mas talvez atinja esse elevado patamar de lucidez e segurança um dia destes, quem sabe...

E o César não fala convosco, senhores, que eu não deixo. Enquanto puder, claro. Se ele insistir...

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