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12.9.04

Paixão violenta

Ainda que me suscitasse alguma curiosidade, resisti até hoje a ver o controverso "Paixão de Cristo", de Mel Gibson. Vi-o hoje à tarde, com um pé dentro outro fora, mentalmente preparada para deixar de ver assim que a brutalidade do sacrifício se tornasse insuportável.

Rejeitei, desde sempre, os filmes suportados na estética da violência explícita, que nem caracterizo de gratuita para evitar redundâncias. Acredito que a ficção deve ser amenizadora dos medos e embelezadora das tristezas. Não gosto de filmes e não vejo filmes (e outras formas de arte, mas agora falo de filmes) que me suscitem sentimentos depressivos, que não me apontem soluções ou que, simplesmente, não me adoçem o pensamento. É por essas razões que vejo com todo o prazer filmes very-light como os da Meg Ryan com o Billy Crystal e que me recusei liminarmente a ver o "Saló" de Pasolini ou "Brincadeiras Perigosas" do Michael Haneke, dos quais, esgotados os primeiros dez minutos de fita, fugi, pressentindo o horror negro e depressivo do enredo.

O filme do Mel Gibson é brutal, violentíssimo. Filma, em verosímil tempo real, todo o sofrimento inflingido a Jesus Cristo na cena do espancamento/flagelação pelos romanos e a caminhada até ao Monte de Gólgota, carregando a cruz. A tal ponto é violento que, a dada altura do filme, se sente uma espécie de efeito anestésico provocado pelos abundantes planos explícitos de Cristo - feito, entretanto, numa chaga viva (que me fez indagar como é que ainda estava vivo) - e que anulam ou diminuem o efeito devastador que teria, noutras circunstâncias, a crucificação.

Mas isto é sabido e corrente, a violência do filme. Por isso não o queria ver e não o veria se outras motivações não tivessem surgido ao longo do filme. Reparei, por exemplo, no inquietante abandono a que todos, mesmo os amigos, os indecisos, os críticos o devotaram, o intolerável medo dos inocentes às mãos dos brutais, abandonados por todos os que, podendo impedir, não impedem, porque "aquilo não é comigo" ou "prejudico-me, se impedir". A história da humanidade, sobretudo a mais recente, está recheada de episódios destes. E a história de cada indivíduo, também.

Não vi qualquer anti-semitismo no filme. O que não quer dizer que não seja essa a intenção subliminar, embora, se for, mal conseguida. Não se exalta o anti-semitismo pintando com cores primárias de maldade invejosa os fariseus do Sinédrio ou a homossexualidade apatetada de Herodes. Além disso, Pilatos, que eu sempre tive como um sacaninha, é neste filme um covarde que entrega Cristo aos fariseus em troca da pax romana. Quanto mais hesita, mas covarde se torna. Antes fosse mau de uma vez. E Pilatos era, como sabemos, romano.

Gostei do azul da noite na cena inicial no monte das Oliveiras, quebrado pelo fogo alaranjado das tochas dos soldados. Pareceram-me esotéricas demais as cenas da lágrima a cair do céu e do diabo(?), vencido, a pragejar numa cratera de fogo infernal, depois da crucificação. Tiradas à Lars Von Trier, que não convencem num filme que, apesar de falado em aramaico e latim, ainda é americano.

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