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11.9.04

11 de Setembro

São 11 dias de Setembro e toda a gente sabe o que aconteceu no dia 11 de Setembro, mesmo quem tem ciência doutros Setembros, antes e depois.

Há muitos dias nos anos, há muitos dias nos anos todos. E há dias que chegam para todas as belezas e para todas as atrocidades. Cada um encaixilha o 11 de Setembro que quiser, na moldura que preferir. Eu sei, até sou suspeito, costumo emoldurar coisas feias, pelo menos de beleza duvidosa, como se quisesse guardar para mim toda a beleza que as coisas menos belas escondem e, mesmo assim, escondida dos outros, a emoldurasse. Uma moldura quase que pede exposição, mas nem isso devassa a beleza: é que a beleza está sempre por dentro do caixilho, mas nem sempre se vê assim, de caras.

Hoje vi-a, a ela, outra vez. Bendita e "matadora" urgência de dez para onze. Eu conto este bocadinho de Setembro.

Entraram-me pelos olhos dentro uns olhos azuis que deitavam luz, por debaixo dumas raras sobrancelhas pretas. As sobrancelhas eram fartas mas a raridade está na combinação: o azul combina mais frequentemente com raridades supraciliares. É discutível? Eu sei. Nem sequer o azul é importante.
E, no entanto, ela entrou-me pela memória. Não a identifiquei logo: a gente está sempre a ver gente que se julga única, gente que a gente se esforça por julgar única, mas que se dilui sempre no imenso universo de gente única que a gente, no fundo, está sempre a ver.

-Conhece-me?
- Conheço.
- Sou a mãe da Beatriz.
- Eu sei.

Não sabia, mas sabia. Eram os mesmos olhos numa pessoa diferente. Não tão diferente como isso, vendo bem. Eram os olhos da pessoa no lugar dos olhos da mãe da pessoa, eram, bem vistas as coisas, os olhos da pessoa. Os olhos são os olhos.

Isto é pesado, não leiam. É sempre pesado quando uma mulher de 65 anos nos reconhece como "aquele que tratou da filha que morreu". Pode ser pior quando a mãe tem 40 ou 50 anos, mas o que conta é a idade da filha. Nem sequer é a idade da filha , é a filha. E os olhos da filha nos olhos da mãe.

A gente é elemento passivo deste drama até nos chamarem a ele. Pode ser pela gratidão ou pelo rancor, que nos chamam ao drama. Mas, a grande verdade, é que é melhor quando não é, ao menos, pela indiferença. Sem indiferença é sempre melhor. Tudo é melhor com sal, mesmo que sal a mais faça mal a algumas coisas.

- "O filho dela tem os olhos iguais a ela, sabe? Eu sei que o senhor tem um filho da mesma idade..."
- "Eu sei. Eu falei com ele..."

Falei, tinha falado, de facto. Quando a mãe morreu, falei com o filho, que estava ali pela mão do pai. É sempre como os filhos estão melhor, mesmo quando são grandes: pela mão do pai, ou da mãe, pela mão de alguém. Se for mesmo preciso, que seja só pela mão deles, pronto, sem mais nada. Mas só se for preciso.

De vez em quando o João (é o nome do marido da Beatriz e tem olhos castanhos) vem falar comigo. Fala comigo muito pouco. Não entra, sequer, no Hospital de Dia, porque não consegue: tem um nojo de nós que o envergonha, uma vergonha sem sentido, vomita homem! Chega, com a humildade dos fortes, entrega-me um aperto de mão muito forte (ele é carpinteiro, é daqueles homens pequenos que têm muita força, mais força que nós) e uma lata de "foie-gras" que ele continua a fazer com gansos de longe. Vez por outra, uma garrafa de bom Bordéus.
Quando traz o filho, traz os olhos da mãe do filho nos olhos do filho.

Eu não contava era rever os olhos da Beatriz em olhos mais antigos que os dela. A perturbação vem-me daí, mais uma vez. Nenhuma pessoa quer que os olhos dum filho se recordem nos seus. O contrário é que é normal.

O filho da Beatriz é que pode não estar de acordo. E não está, seguramente, mas é apenas um petiz de 14 anos com saudades. Tem essa desculpa.

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