Aborto (III)
Ambos morderam o isco, como desejei. O Besugo, num momento em que se encontrava invadido de um poderoso raciocínio divergente que lhe permitiu dissertar, numa mesma linha de pensamento, sobre Manoel de Oliveira, Sócrates e... o aborto. Eu sabia, contudo, que ele havia de voltar mais refeito e que, muito para além de concordar com o que eu disse, também "acha outras coisas" sobre o tema.Já o Alonso debitou em larga extensão sobre a defesa católico-radical do direito à vida. Eu juro que não estava a pensar nele quando mencionei o fundamentalismo cego da diáspora católica; mas não o desminto, se é ele que se confessa radical. Tão radical que não admite discussão sobre as suas convicções, que admite serem dogmáticas, sustentadas na sua fé e, portanto, indesmentíveis. Ora sucede que assim não se discute nada.
Ou por outra: discute-se, sim. E discute-se porque o estimado Alonso se imola, logo de início, numa tentativa de vitimização alheia que resulta da maniqueísta guerrilha dos católicos contra o resto do mundo e com a qual espera conseguir eliminar - ou apoucar - os argumentos do adversário. Mas eu até já me confessei, aqui, cristã (não católica, cristã) intermitente, embora crítica das instituições da Igreja e do afastamento secular da Igreja, enquanto organização, da doutrina cristã. E ainda não me esqueci da subliminar carta aos bispos do Ratzinger...
Não me custa, assim, rigorosamente nada acreditar na boa fé com que os cristãos e os católicos rejeitam a prática do aborto por convicção moral radicada exclusiva e genuinamente na sua fé e não por alienação histérica (tão longe da verdadeira fé) hetero-imposta. Julgo que me faço entender. Era desta última hipótese que falava quando me referi ao radicalismo católico na qual acredito que, por formação e existente massa neuronal, o Alonso não se revê.
Esgotada a discussão por via da fé - indiscutível por essência, como bem notou o besugo - constato que, estranhamente, o Alonso abordou o tema nas suas dimensões religiosa e científica e omitiu - deliberadamente ou não - a dimensão jurídica, a única que o Estado laico em que vive o Alonso e todos nós se dispõe a discutir, a única que é suficientemente plástica para permitir ponderar os interesses em jogo no contexto da defesa dos direitos humanos, ou seja, na dimensão filosófica, humanitária e social (sim, besugo, leste bem) da questão da interrupção voluntária da gravidez. E eu acredito que é possível a um jurista católico distanciar-se da sua dimensão religiosa para descer à discussão do tema de um ponto de vista jurídico-humanista ( que não é exactamente o mesmo que humanitário, besugo, mas é aquele que conforma este).
Não sei se tenho sido clara nas vezes que, aqui, falei no aborto: o que eu defendo é que a decisão da prática do aborto diz respeito exclusivamente a quem tem de a tomar e que não há instituição estadual, supra estadual ou infra estadual que possa ingerir numa decisão tão profundamente íntima quanto difícil de tomar. A dignidade do direito a tomar decisões sobre o próprio corpo é tão essencialmente individual que não se compadece com manifestos feministas, políticos ou politizados ou solidariedades flamengas. É indigno, para qualquer mulher com um pingo de bom senso, conceber sequer a ideia de que aquelas senhoras holandesas (cheias de boa vontade, acredito) tencionavam provocar abortos em massa naquele contentor sinistro. Uma boa parte da culpa da banalização do debate da despenalização do aborto deve-se aos movimentos feministas que usam o direito ao aborto como uma bandeira para combater outras guerras menos nobres, para não dizer bacocas. O respeito que merece a discussão do aborto, por exemplo, nas situações de miséria social, tem sido vandalizado na politização de um direito que é tão essencial à condição humana como o direito à vida.
E isto traz-me à questão de fundo. O Alonso nega a existência de conflito de direitos entre o feto e a mãe, escudando-se no argumento - fácil - do direito à vida vs. direito a interromper uma gravidez, segundo o qual este necessariamente cede perante aquele. Neste contexto, convido o Alonso a reflectir uns segundos sobre o conteúdo do direito à vida. O direito à vida esgota-se no acto de viver - rectius, no de sobreviver - ou, de forma muito mais ampla, cumpre-se na plenitude com que se exercem os direitos inerentes à vida? Dito de outra forma: como se cumpre o direito à vida da mãe que, proibida de dispor do seu próprio corpo, fica impedida de gozar plenamente o seu direito à livre escolha dos seus projectos de vida? Como se pode estigmatizar a mãe por um erro de trajecto da sua própria vida que só ela tem o direito de decidir se quer reparar ou não? Como se pode obrigar alguém a ser mãe mesmo que, no seu íntimo, ela não pretenda ser e que, mesmo perante a profunda angústia que causa uma interrupção de uma gravidez, ainda assim a quer interromper? Quem tem o direito de ingerir sobre uma decisão deste teor?
Bom. Há mais razões que sustentam a despenalização do aborto mas, como bem diz o Alonso, são apenas instrumentais. Podíamos, por exemplo, discutir a vergonha, a culpa, a angústia, a solidão que representa recorrer a clínicas clandestinas (e isto na melhor das hipóteses) para interromper uma gravidez. Podíamos, também, discutir a indignidade da perseguição penal às mulheres que praticam o aborto.
A continuación, talvez. Quanto a ti, besugo, quase que concordo contigo. Quase. Depois explico, que isto já vai muito longo.
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