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28.9.04

Misturas

As discussões "globais" sobre seja o que for são muito difíceis. Sobretudo quando decorrem em frente às câmaras da televisão (porque, aí, a vontade de "parecer correcto e bem" impera mais) e, por inerências de "share", as pessoas recorrem a muitos testemunhos. São debates interessantes mas falta-lhes tempo. O tempo é importante, devia ser longo, cada assunto devia ser esgotado, sem saltitar entre temas porque "agora dá-me jeito assim".

No entanto, o debate desta noite, na RTP, interessou-me. Primeiro porque trabalho na área da saúde, sou médico. Depois, porque estavam lá o pai do Serviço Nacional de Saúde (estava em Coimbra, mas estava no programa) e o seu potencial coveiro. Entre outros. E, depois, porque também hei-de adoecer, suprema visão do egoísta.

Tudo se diluiu, como sempre se diluem os solutos nos solventes (até à saturação, claro) , no testemunho daquele homem cuja mulher morreu com um aneurisma dissecante da aorta. Pelo que contou, foi 5 vezes ao hospital. Não acredito que não lhe tenham visto "as tensões". Ver as tensões é uma coisa que nem sempre é importante, mas, neste caso teria sido. Isso e ver os pulsos femurais. E deve ser rotina, na Triagem, ver estas coisas. No meu hospital é, ou quero crer que seja. Lá também deve ter sido, pode é ter dado "tudo normal". Ou então, não sei que diga.

Digo isto, que também não resolve nada.
Os diagnósticos prováveis formulam-se perante suspeitas. Suspeitar é preciso, mas suspeita-se menos quando se está cansado. E, outra verdade prática, se alguém recorre em dias consecutivos ao hospital, com as mesmas queixas, deve ser internado, passado "para dentro", mais pensado, observado com especial atenção. Por muito que se venha a concluir, depois, que afinal não era preciso tanta coisa. A precisão define-se por si própria, não pela sua consequência. É como o erro: a sua gravidade é intrínseca, não deve ser analisado consoante o dolo que causa. Sei que é mais difícil julgar intenções, mas viver é mesmo difícil e devemos resistir ao fácil, não é?

Para pensar é que é preciso tempo. Enquanto há tempo para pensar. Por isso defendo que não deve haver médicos a trabalhar 24 horas seguidas. E, às vezes, mais. Que a Triagem é um acto de grande importância. Decisiva. E que, entre a ignorância e o cansaço fica, por culpa de nós todos, uma grande quantidade de "espaços em branco".

Sobre o que penso dos centros de saúde, dos hospitais SA (como o meu), dos outros hospitais, dos enfermeiros, dos médicos, das políticas, falo noutro dia. E sobre outras coisas, também. Não porque pense saber muito das coisas, sou só médico, mas porque também sei. Faço parte. E as coisas devem ser analisadas sem as confusões inerentes ao "contraponto fácil". Só fazemos ruído, quando vamos por aí.

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