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31.8.04

Flores

Olha, "N.": o nosso Sporting lá ganhou ao Gil Vicente, um bocadinho à rasca, mas ganhou. Tu já não viste o jogo, que já tinhas começado a morrer. Acabaste de morrer no dia seguinte, ontem, sem dores, que o teu filho contou-me. Sacana, tive eu de lhe telefonar a saber de ti, tanto lhe pedi que me fosse dizendo coisas e o tipo não disse nada, armado em médico antigo, o puto, "que não me queria incomodar no dia dos meus anos"... Mas teve, ao menos, a sabedoria de ir bater na porta certa e sancionar o que queria: aumentar-te a morfina que te sossegasse. Dormiste, dormiste, dormiste. Não há outra dignidade que seja maior que a tua, que a do teu filho e, já agora, que a do anjo que te deixei aqui, alerta. Para o teu filho poder bater a uma porta bonita, enquanto eu ia bronzear o estúpido lombo longe de ti e de mim.

Vai ser um bom internista, o teu filho, "N.". Tem o teu carácter de granito bruto, muito mais quartzo que "feldspato e mica". E é depositário fiel da tua revolta mansa, sossegada, de bravo. Ele não sabe que eu escrevo estas coisas aqui, nem nunca há-de saber, que eu não lhe digo. Descansa. Em paz, que eu não lhe digo.

Sabes? No dia 15 de Agosto, de manhã, fui ver a campa de Salgueiro Maia, em Castelo de Vide. Podes confirmar isso com ele, com o teu desditoso companheiro das abreviaturas da vida, aí onde estás agora, procura-o bem. Fui mesmo: vi uma campa rasa, cinzenta e descuidada, sossegada na sua discrição de tumba triste debaixo dum céu azul-ferrete, ensolarado. Cheirava lá bem, cheirava a terra, e havia ali um choro manso, cansado, uma tristeza de orfandades muito antigas que a Lolita ainda tentou alindar, rejuvenescer, ajeitando as flores artificiais e empoeiradas do tempo que lá estavam, caídas num cansaço sem nome.

Ela também não conseguiu, "N.". Não fui só eu. Acredita, não fui só eu, ela também tentou e não conseguiu, ela tentava e as flores caíam sempre, sempre, sempre...

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