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6.12.03

Lembranças de besugo (I)

Quando Sá Carneiro morreu, de "morte trágica e acompanhada", eu besugava pelo Porto em ânsias de ser médico e de ser gente. A morte é sempre trágica, nem sempre se morre acompanhado e quanto ao resto, onde besugava eu, é irrelevante para o mundo inteiro. E ainda hoje continuo a tentar ser médico e a perseguir ser gente. Donde se deduz, com trasmontana simplicidade, que o único facto relevante deste intróito é a morte do pequeno advogado narigudo e acutilante do Porto.
Mas para mim não basta. Sem nunca ter sentido fascínio especial pela personalidade política de Sá Carneiro, afigurava-se-me "romanesca" a sua passagem contestatária pela Assembleia Nacional, a sua faceta emocional de homem mundano (no melhor sentido, amorável mas nunca imoral) e lutador. E vilipendiado, que acredito que o foi.
Para além disto, vinham-me lufadas de "Sá-Carneirismo" da casa paterna, onde, ainda hoje, o tema "Sá Carneiro - a vida e a morte" não é pacífico, fazendo-me nutrir pelo pequeno-grande estadista genuína simpatia.
Acresce, senhores, que eu vivia no Porto. Ainda hoje é a minha cidade do coração, habituado que fui, desde pequeno, a "ir até ao Porto fazer compras aos Marques Soares", que era onde se abasteciam de roupas e pequenos folguedos os funcionários públicos e seus filhos. E aquela atmosfera cinzenta de invernia, aquela calidez de quem se importa, "aquela altivez de milhafre ferido na asa", senti-as sempre como minhas. Mesmo sabendo que me eram emprestadas.
Quando Sá Carneiro morreu eu senti a tristeza da cidade quase inteira e "reequacionei" o homem. Dou-lhe letra pequena, ao homem, que é a que me dou, a mim. E eu não posso dar-lhe mais do que o que tenho. Mas cresceu-me, na "reequação", outra pessoa maior. Percebi que se podia, sem hipotecar honestidades, sofrer pela morte de alguém que nos não pertencesse por laços de sangue ou, sequer, ocasional conhecimento. Entendi a noção de símbolo quando o meu Pai me disse aquilo que o Mata-mouros admitiu ter desabafado, logo que soube da triste notícia. "Mataram-no!".

Eu continuo a "querer crer" que não o mataram, porque me é mais fácil acreditar num acidente. Os acidentes choram-se, lamentam-se, a gente sofre, mas não "se sofre". A gente não "se sofre" tanto. Sangramos mais quando pressentimos, na morte, orquestração.

O meu Pai adoptaria o discurso saudoso, calmamente revoltado, de quem ainda hoje "sente falta", do CAA. E eu comovo-me com cada vez mais facilidade, que os quarenta anos são a última barreira da comoção. E cada vez mais pressinto, nos outros, a grandeza que não tenho. Que me impele a persistir na tentativa de ser gente. Ser médico é mais fácil. E já não vivo no Porto, tristemente.

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