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14.5.08

Leis divinas

O modelo de sociedade asséptica e das restrições em nome do supremo bem comum ilustrou-se bem hoje com aquele episódio patético da confissão do pecadilho cometido pelo primeiro ministro, seguida da competente contrição. O tema teve direito a abertura nos telejornais e deu origem a uma acesa polémica, amplamente condenatória de um acto proibido por lei (o itálico é importante), não só por todo o espectro partidário como das associações e causas empenhadas na luta (também em itálico, que também é importante) anti-tabágica, todos em uníssono pedindo a cabeça do Sócrates. Quando as sociedades europeias se regiam por modelos de convivência social menos desviantes, os assuntos de topo da agenda política eram coisas como o aumento dos cereais ou do petróleo, as listas de espera nos hospitais ou o debate sobre o estatuto do aluno no sistema educativo. Isto, no meio de outras minudências como sejam as infinitamente pueris considerações do ex-ministro Mira Amaral sobre a autoridade do "cantor pop" Bob Geldof acerca dos governantes angolanos. O que se passou hoje, passando adiante a dimensão burlesca das desculpas do primeiro ministro (e que, no caso dele, deve tratar-se de uma verdadeira vocação) foi uma espécie de encenação de má-fé recíproca: uns acusam, o acusado confessa o pecado, mas, na verdade, toda a gente se está nas tintas para o tema, excepto num detalhe - é proibido, por lei. Não esqueçamos: trata-se de um cigarro fumado dentro de um avião, a caminho de um país governado por um tiranete poderoso, que se fosse português seria comparável a um Ferreira Torres no perfil moral e a um Valentim Loureiro na boçalidade. Ou vice-versa. Talvez um dia eu me convença de que tudo isto, todo este show colectivo sobre "o dia em que o primeiro ministro fumou um cigarro dentro de um avião" seja fruto de profunda convicção, de crença, de uma pós-teologia de massas que, como todas as teologias, nos inculca pecados originais e respectivos desdobramentos, caso em que Saramago poderá, eventualmente, ter acertado (sem querer) ao dizer que presenciamos um qualquer apocalipse e provando-se então, de vez, que os mitos são mesmo produtos humanos - e que, na pós-modernidade, dispensam qualquer ética e qualquer estética.

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