O arraial acaba amanhã.
Quase a esgotar-se que está o torrencial debate sobre o referendo, mantenho intactos e exactamente iguais os motivos do meu voto e não li nem ouvi nada que me fizesse reforçar a minha opinião ou contradizê-la. Ninguém se lembrou, nem de um lado nem do outro, que retórica a mais convida os indecisos à abstenção. E ninguém se lembrou, também e quase sempre, que o aborto não se debate com a mesma ligeireza com que se discute o processo do apito dourado.
Em todo o caso estes últimos quinze dias, memoráveis na história lusitana, foram marcantes em vários aspectos. Passo a exemplificar.
- Confirma-se o que já se suspeitava: as alas conservadoras da sociedade portuguesa estão bem modernaças. Já se pressentia, na campanha presidencial de Cavaco Silva, que estava em crescendo uma nova atitude da direita portuguesa a demarcar-se do cinzentismo espartano salazarista, sem todavia perder os tiques betos que lhes marcam ostensivamente a diferença face aos modernaços de esquerda. Trata-se, no fundo, da geração pós-MEC, que este inaugurou. Essa nova atitude da direita valeu-lhes, julgo eu, algumas alterações de sentido de voto nas faixas mais jovens, deslumbradas com a bem organizada campanha fresquinha e colorida, embora com indisfarçáveis moralismo e inconfessadas intenções de expicar ao povo em que consiste a suprema experiência da maternidade.
- Só a Pacheco Pereira, que foi sóbrio e contido sobre este tema, se pode atribuir a legítima excepção ao marasmo profundo da cacafonia sobre o debate público do aborto. E a Marcelo Rebelo de Sousa, concedo, mas pelo humor (que supunha ter sido involuntário até ele próprio confirmar que o seu video é o mais visto na secção de comédia do YouTube).
- A campanha teve episódios burlescos. De entre muitos, lembro-me das "mulheres que abortam por negócio", segundo Castro Caldas. E das freirinhas a sair do convento para não pecarem por omissão. E Correia de Campos? A dada altura calou-se; o que, num certo sentido, é de lamentar.
- Um debate sobre o aborto serve como indicador do grau de progressismo da Igreja, quer pela confirmação dos métodos culpabilizantes para repressão de consciências quer mostrando ao mundo o que sucede com os seus dissidentes.
- Quase todos, de ambos os lados, mostraram abundante arrogância e sobranceria na discussão. Quase todos tomaram como sua uma causa alheia. É como digo: matérias do foro privado que não podem, e não deviam, sujeitar-se a referendo. Sobretudo se um referendo se faz anteceder de um imenso e colectivo debate de virtuosas vaidades.
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