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23.1.07

A importância dos números

Um confesso defensor da vida ao seu mais extremo limite, ao ponto de não admitir, sequer, as excepções que a lei actual estabelece para a licitude do aborto, confunde-me. Porque, sem precisar de ir mais longe, Alonso, lembro-te que uma das causas de exclusão da ilicitude previstas na lei actual consiste no perigo de vida da mãe - vida essa que, para ti, é irrelevante face à vida do feto, que deve, defendes tu, prevalecer a qualquer custo - mesmo que esse custo seja a morte da mãe. Donde eu depreendo, Alonso, que o que tu defendes com fervor é, afinal, apenas a vida do feto - o que é, convenhamos, um conceito ético de vida de âmbito bem restrito. O que torna a tua causa bem mais... estranha.

Quanto à tua persistência na ideia de que "despenalizar é liberalizar" (que belo panfleto isto daria, heim?), e tendo em conta que já estou em fase de crescente agastamento a lembrar-te a evidência de que uma sociedade se regula e ordena por muitas outras ordens, para além da ordem jurídica que tu, sem querer, endeusas, vou exemplificar a questão pedindo-te para imaginares que, amanhã, te apetecia sair à rua de saltos altos e e chapéu de plumas, no mais puro estilo das corridas de Ascot. É crime? Não. Ias preso? Claro que não. No entanto, não sairás (supunhamos que te apetecia muito, mesmo muito) assim à rua amanhã, pois não? Pois não. Porquê?

Não percebo muito bem onde vês hipocrisia nos defensores do "sim" ao referirem a ignomínia dos julgamentos das mulheres que abortaram na vigência da actual lei. E tu referes que foram poucos, esses julgamentos. Acompanhas, portanto, o D. Luciano Guerra(*) na sua brilhante tese do grau de escândalo social do pecado: quanto menos se souber, menos pecado é. Se a adaptarmos à tua excelente nota sobre a inexpressividade do número de julgamentos, teremos então que, para ti, os defensores da despenalização não têm razão porque a lei actual pode manter-se, desde que todos façamos de conta que ela não existe.

(*) Não comentaste a entrevista que te indiquei no outro post. Leste? E então, o que me dizes?

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