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11.12.06

Paixões além da morte

Ser familiar de alguém que sofreu ou morreu por crime infame (ou mesmo de alguém que, sendo infame, sofreu ou morreu por obra de causas justas), confere-lhe uma espécie de imunidade moral justificada pela mágoa da perda. Percebe-se, e justifica-se, por isso, a exigência de punição, do castigo e, claro, da vingança, paixão tão profundamente humana como embaraçosa para quem se sabe humano - infelizmente desbaratada por quem vive sem qualidade (vide o caso Carolina Salgado) e cultiva esse bas-fond existencial.

A punição da maldade humana, se executada pela via institucional, é devida sobretudo como apaziguamento da dor dos destinatários involuntários dessa maldade. Como castigo e redenção colectiva, aparenta-se mais com uma pena de Talião ou com um juízo quase divino sobre a maldade alheia, que não é nem melhor nem pior do que a de quem julga (ou julga poder julgar).

É quase unânime (quase, porque se sabe de quem lhe chore a morte) que Pinochet deveria ter sido julgado pela morte e desaparecimento de milhares de pessoas. Deveria, enquanto foi vivo. Há, porém, quem lamente que a sua morte se tenha antecipado ao julgamento dos homens, como se se reivindicasse a necessidade de que se mantivesse vivo apenas para ser castigado. Se a vingança está no limiar mais baixo das paixões humanas, bate no fundo quando se lamenta a morte de um ditador por morrer sem castigo.

No entanto, foi a ele que a morte o fez finar-se. Não me admiraria que, com o tempo, aqueles que reclamam da morte que o furtou à justiça dos homens lhe viessem a reconhecer, afinal, obra meritória para além dos chilenos que lhe morreram às mãos. Já estes, com o tempo, engrossarão as monstruosas estatísticas dos seculares crimes da humanidade - o que equivale a dizer que ninguém saberá quem foram.

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