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1.7.06

Convicção moral

1. Um distinto jornalista quis falar comigo sobre o próximo congresso do PS. Escusei-me. O que neste momento me aflige é saber se Cristiano Ronaldo joga ou não. Como milhões de portugueses, só penso no Portugal-Inglaterra. É só um jogo, dir-me-ão. Pois aí é que está o busílis: é só um jogo. E um jogo é um jogo é um jogo, escreveu uma colunista do PÚBLICO, parafraseando Gertrude Stein. Um jogo. E por isso este aperto no estômago e na alma. Porque só pode haver um resultado. E uma vitória é uma vitória é uma vitória.

2. Desde 2002 que nenhum jogador da selecção portuguesa tinha sido expulso. Há, no entanto, uma campanha para tentar fazer crer que somos um país de trogloditas, com uma selecção constituída por malfeitores. Portugal é suspeito de ser um perigoso candidato a estragar os planos dos donos da FIFA e poder vir a intrometer-se em meias-finais mais ou menos predeterminadas. Eriksson mostrou mais uma vez que é um cavalheiro. O mesmo não se pode dizer de jornalistas ingleses que por todos os meios procuram pressionar a arbitragem e provocar a nossa selecção em termos que, por vezes, roçam a grosseria e o insulto. Mais estranho é que um jornalista português, na véspera do Portugal-Holanda, tenha perguntado ao árbitro Ivanov se achava que Portugal se ia comportar melhor do que na Coreia. Talvez o nosso destino, desde aquela "primeira tarde portuguesa" (assim se referiu Alexandre Herculano à batalha da fundação, em S. Mamede, Guimarães ), seja o de, antes de enfrentarmos os outros, termos sempre de começar por aturar alguns dos nossos.

3. São muitos os interesses que dominam o Mundial. Festa dos povos por um lado e, por outro, uma espécie de nova luta de classes entre quem tem o poder e quem o não tem. Esteve bem Pauleta, na conferência de imprensa onde, com firmeza e elegância, defendeu a dignidade da selecção e do país. "O Mundial não se joga só no campo", disse ele. Pois não. E talvez não tenha sido por acaso que o presidente da FIFA tenha feito mais uma insólita declaração, desta vez a elogiar Klinsmann e a selecção alemã. O que é quase uma indicação de voto sobre as suas preferências para a final. Escrevo antes do Argentina-Alemanha. Mas toda a gente sabe quem é que a FIFA, além do país organizador, gostaria de ter na final. É importante que a nossa selecção saiba que, contra os interesses instalados, o país está com ela. Por isso, perante o silêncio dos que tinham obrigação de falar, gostei de ouvir o primeiro-ministro José Sócrates a fazer o elogio do espírito de equipa e da liderança de Scolari. Como no filme de Nanni Moretti, apetece-me dizer-lhe: Façamos qualquer coisa de esquerda, continuemos a apoiar a nossa selecção, porque nesta luta de classes mundial os jogadores portugueses estão a ser discriminados.

4. E ao quarto dia Zidane ressuscitou. Como já tinha acontecido com Ronaldo renascido e reencontrado com a sua incomparável arte de marcar golos e com um Figo rejuvenescido no comando da selecção de Portugal. Afinal, até agora, as grandes revelações foram as dos que há muito já se tinham revelado. Esperavam-se os novos, apareceram os "velhos". No futebol, como na política, o marketing anda frequentemente desfasado da realidade. O génio do futebol é o que, na hora da verdade, escreve na relva a sua diferença. Como fez Zidane, de quem, parafraseando T. S. Eliot, se podia dizer: "No meu fim está o meu princípio."

5. "Amargo caminhar, porque o caminho / pesa no coração." Assim escreveu o grande António Machado, assim foi o incompreensível e amargo caminhar da selecção de Espanha. Prometeu tudo no primeiro jogo, mais uma vez promessa não cumprida. Os jogadores entraram em campo tristes e sombrios. Não se ganham jogos assim. Vi lágrimas nos olhos de rapazes e raparigas que em Madrid olhavam para nenhures como se ainda não acreditassem. Talvez seja esse o problema da selecção de Espanha: chega o momento decisivo e duvida de si mesma. Amargo caminho. Um peso no coração.

6. Estou cansado de ler e ouvir que melhor seria que Portugal, em vez de estar entre os oito melhores do mundo de futebol, ocupasse idêntica posição noutros domínios. Parece que mesmo quando vamos além gostamos de nos sentir aquém. Por que é que não estamos à frente na ciência, na educação, na economia? Não é com certeza por culpa do futebol. Lembro-me de um discurso de Felipe González, quando ganhou as primeiras eleições: "Que o pedreiro trabalhe a pedra com convicção moral, que o romancista escreva o romance com convicção moral, que cada um faça o seu trabalho com convicção moral." O meu amigo Miguel Sousa Tavares diz que tem mais orgulho em António Damásio e Maria João Pires do que em Figo e Cristiano Ronaldo. Eu tenho o mesmo orgulho em todos eles. Porque cada um faz bem, com talento e brio, o seu trabalho. Com convicção moral, expressão que vem talvez de Manuel Azaña. Continua a ser preciso que cada um faça bem o seu trabalho. António Sérgio dizia que a reforma das mentalidades era condição de todas as outras reformas. Scolari reformou a mentalidade da selecção. E por isso Portugal está entre os melhores no futebol. Que esse exemplo frutifique e nos ajude a ganhar outros campeonatos, sobretudo o campeonato contra nós mesmos e certos males atávicos: incultura, iliteracia, incivismo, inveja e maldizer. Basta de golos na própria baliza. É tempo de jogar para ganhar. Com brio e convicção moral. Como têm feito os nosso jogadores. Eles cumpriram as suas obrigações. Que outros cumpram as suas.

7. Meu avô Mário Duarte, que dá o nome ao estádio de Aveiro e foi considerado o desportista português mais completo, costumava dizer a meu pai e meus tios, todos eles campeões em várias modalidades: "É preciso saber ganhar com humildade e saber perder sem azedume." Depois, cofiava o bigode e acrescentava: "Agora livrem-se de perder." É o que me apetece dizer, com toda a fraternidade, aos jogadores da selecção de Portugal.

(Manuel Alegre, no Público, para toda a gente)

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