blog caliente.

4.12.05

O primeiro ano

O Porto começava sempre na Rua do Vale Formoso, na janela dum quarto que já não há, que se abria, todas as manhãs, para o cinzento. Seguia por ali fora, até ao Campo Lindo, se fosse para estudar no Cenáculo, ou até ao Covelo, se fosse manhã de estudar no Ofir. Prolongava-se por Antero de Quental afora, se fosse para comprar pão quente de fresquinho na "Padouro", ou até à Constituição, se nos desse para mostar o focinho no Napoleão, onde paravam as meninas do Externato D. Duarte, as mesmas que acabaram, quase todas, por entrar em universidades "paralelas", por falta de média. Acrescentava-se por António Cândido acima, até à paragem do 79, em frente da Ripal. O prédio da Sameca era mais abaixo. E, daí, até ao "paquete encalhado em Paranhos" que era - e é - o Hospital de São João. Vicejava-se, Porto remoçado, no eléctrico para a Foz, quando havia dinheiro para ir ao Molhe afogar em gim a parvoeira, ou nos autocarros para a Baixa, quando sobejavam escudos para jantar na Brasileira, ou no Imperial, para depois se ir ver um filme ao Lumière, um qualquer, um dos dois, ou para gastar cinco escudos vezes dez nos flippers de Sampaio Bruno. Anoitecia, por vezes, na Feira Popular, em enxovias zincadas no cheirete de frangos de churrasco e sardinhas com pimentos, que pagávamos a prestações, "rapaziada, ide-vos lá embora, deveis vinte sete e quinhentos, eu conheço-vos, estudantada, pagais para a semana!", ou no Batô, no Griffon's, na Urraca, se houvesse companhia. Em não havendo, fenecia-se no Estrela, na rua da Fábrica, ou no Surpresa. Ou na Sá Reis, ao balcão dos trolhas, na cerveja e nas moelas do fim. Algumas vezes, poucas, na Rua da Torrinha, se nos acolhesse uma ternura inesperada, daquelas ternuras intermitentes que nos estende quem cuida estar melhor que nós e que, pensamos sempre, durante cinco minutos, é uma ternura eterna.
O Porto acabava sempre, noite fechada, sempre cinzenta, outra vez na Rua do Vale Formoso. E formoso se mantém, o Porto, não sei porquê. Talvez ainda comece e acabe nos mesmos lugares, mas eu já não me lembro muito bem é dos caminhos, porque já foi há muito tempo e, se calhar, nem foi assim.

View blog authority