Rua da parede
A subida das taxas de juro é importante. É tudo muito importante. Vivemos num tempo indexado às importâncias que se nos foram impondo, porque deixámos todos que se nos impusessem. Importâncias de taxas e de siglas, tudo indexado ao nosso "sim, senhores!".Percebe-se que é assim, admite-se que tem de ser assim, não sabemos, sequer, dizer como se faria agora, para ser doutra maneira. Não tenho resposta para isto.
Fomos por aí, temos ido todos, uma turba cega de muitos séculos a fazer o seu caminho aos safanões. É da nossa natureza. Criámos um tempo que já não permite paragens que não sejam consideradas preguiças criminosas, enfeudámos a vida ao real valor que aprendemos a conferir-lhe- um sopro ansioso que se quer, mesmo que breve, produtivo - e temos de aturar timoneiros que já não afagam o leme que lhes pomos nas mãos, antes o fixaram, já, num azimute que nenhuma tripulação ousa discutir. Porque o rumo, está, de facto, traçado. E o retorno, o pensar outra vez, já não é deste tempo: é como se fosse, apenas, perder tempo.
Tenho pena. Não por mim, que já me habituei à lama que me atiram, a cada passo, mesmo que só a sinta por leitura. Eu já não mudo desta calma e funda tristeza de não gostar que seja assim. Mas pelos meus filhos. Viverão bem, viverão mal? Servir-lhes-á de alguma coisa o que lhes tenho ensinado sobre a importância dos outros, da necessidade perfeitamente premente de ligar às pequenas coisas que embelezam uma existência fugaz, que só faz sentido se houver legados de amor que perdurem na memória funda dos que nos mirarem, com alguma ternura, nas fotografias amarelecidas pela ausência? Não estarei a prejudicá-los, a colocá-los fora do tempo que os espera, um tempo já em andamento há muito tempo?
Não sei. Gosto do novo título do blog do Miguel. "Tempo dos assassinos". Nem me dei ao trabalho de dissecar o título: é lá da cabeça dele, a ideia dele pode, mesmo, ser tão diferente do que eu penso e sinto agora, que se faça aqui uma poça de ridículo, cheirando a chôco, neste pequeno escrito. Ele que me desculpe, se for o caso.
Lembrei-me dele por coisas pueris. Sem má intenção. Eu não contesto o que não entendo bem senão onde o sinto. Nada sei de economia, talvez seja por ignorância que me parece torpe como entidade liderante. "It's economy, stupid!", eu sei, ou por outra, não sei. Que hei-de fazer? Aceito-a, que remédio, porque a há e porque é assim que a querem, ao leme. Não posso fazer nada.
Mas, dizia eu, lembrei-me do "Tempo dos assassinos" por uma coisa simples, como todas as que me demoram. É o nosso tempo, igual ao que sempre foi, mas agora legitimado na falta de alternativa que deixámos que se criasse, que criámos, por desleixo e por má fé de quem nos diz as coisas.
Como todos os simples, não tenho vergonha nenhuma de dizer que gosto de futebol, que vibro com ele (e com toda a competição desportiva que me pareça de mãos e pés limpos: acredito nas virtualidades do corpo, creio mesmo que o encéfalo faz parte dele) e que jantámos mais cedo (jantamos tarde, geralmente) para ir ver o Sporting. São fogachos de beleza fora do tempo, para tontos.
Contudo, antes disso, fomos conversando e vendo as notícias. Os miúdos são estranhos. Já não os choca muito que morram militares e civis no Iraque, ou no Afeganistão. Parece que criaram uma couraça, toda feita do ferro do hábito, que lhes coloca estas mortes quase na mesma dimensão dum filme de guerra, não sei. Contudo, estranhamente, fixaram-se na execução daquele homem, na América. E no enforcamento do jovem australiano, em Singapura. Cuido que se sentiram mal, porque protestaram, mostraram imenso desconforto. E a culpa é minha, que sou incapaz, burro besugo, de lhes explicar que as coisas importantes já tinham dado antes, envolvendo o Banco Central Europeu e outras siglas com o divino potencial de taxar. Mais: nem sequer sou capaz de lhes pedir que aceitem a vida como ela é, porque já os deformei, às tantas. De tal maneira que eles pensam, seguramente mal - e a culpa é toda minha - que a vida conforme a vejo eu é a vida que é, porque os ensinei a vê-la assim, toda fora do tempo.
Não sei. De qualquer forma Victor Hugo veio-me à lembrança. "O condenado". Os petizes começaram a dizer que deve ser horrível morrer-se assim, a frio, depois de longa espera, condenado por gente de toga que, quando não está a decidir - competentemente - destas coisas, faz as suas refeições e as defeca, tranquilamente, após competente digestão, também. E falámos disso, um bocadinho, o que não terá sido, uma vez mais, uma excelente ideia. Excepto pelo facto indiscutível de Hugo ter sabido escrever melhor que qualquer economista. Pouca coisa, irrelevante para o que, de facto, importa.
Mas, a torpe e ignominiosa verdade, é esta: nem eles se mostraram impressionados com a subida das taxas de juro, nem eu saberia explicar-lhes bem a transcendência daquilo, se se tivessem mostrado.
Já sei, proponho que me retirem as crianças. Ou que, em alternativa, parem um bocadinho a ver se eu vos percebo. Ou se vocês me percebem a mim, o que será difícil para cérebros assim fecundos, ainda por cima ligados às altas frequências da inteligência superior do cálculo (ISC, um novo deus que me lembrou agora).
Se é por isto que vou votar em Manuel Alegre?
É. Para grande vergonha minha, ele que me desculpe, é quase só por isto.
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