blog caliente.

8.12.05

A hora do sono

É muito alto e deve ser bastante forte, que tem ombros possantes e pescoço largo. Tem trinta e cinco anos. Tem uma mulher bonita. Ele próprio é bem parecido. E tem um cancro. E grandes possibilidades de não morrer dele.

Calhou calhar-me. Já fez três tratamentos, o terceiro foi hoje. No fim, veio na mansidão rebelde que eu mais gosto: perguntou-me o que já lhe adivinhava há quinze dias, nos olhos calados. Quer saber se há lugares onde se saiba mais do que no meu lugar, se há pessoas que saibam mais do que o que eu sei. Vinha manso, envergonhado de perguntar o que tinha de perguntar, com vergonha de me ofender nos galões que não tenho. Mas vinha altivo, como eu gosto, aquela altivez que não ofende, a que nos consola e nos faz sorrir por dentro, a altivez de quem, tendo dúvidas, remoendo-se, pergunta: não afirma ao calhas.
Gostei dele e disse-lhe que sim. Que há, no mundo inteiro, lugares melhores e pessoas que sabem mais do que eu. Aos molhos. E devolvi-lhe a pergunta: "você não sabia, já, que sim? Quer ir lá fora? Quer que o mande lá?".
Ele disse que não era isso, que eu não levasse a mal, pelo amor de Deus, mas que não era isso. Mas eu sei que sim, que era isso mesmo. E assegurei-o do que lhe interessava saber: da veracidade da minha resposta, a única réplica honrada que podia ter uma pergunta tão honesta e entendível.
Raio do puto, doente e com receio de me ofender, de me entristecer. Há cada um, tão bom quando se cuida mau!
Gostei dele, fala de olhos nos olhos. A sério, não os desvia.

Eu depois conto-vos, mas acredito que não vai querer sair-me das mãos. Que estão a ficar frias, por sinal, hora do sono.

View blog authority