Prosa tonta
O pobre homem da Póvoa, essa espécie de Eça quase humilde (que só terá existido, humilde assim, convenhamos, na sua própria cabeça), tem ali, na Praça do Almada, além de estátua, estes dizeres.
Levei lá os meus rapazes: sendo a Póvoa o nosso lugar de passagem e estadia mais frequente, nunca se tinham aventurado muito para além da Avenida dos Banhos, da Rua dos Cafés e da Junqueira. Estão a crescer, ficam-lhes as passadas mais largas, mais capazes de os levar a espreitar os sítios, os lugares. Viram a Matriz, o museu, a Póvoa mais antiga, a Póvoa de dentro.
Não os levei ao cemitério: mal recordam o tio Zé, apenas que era grande e forte; e que parecia presidir, quase redondo, na mesa do fundo do andar de baixo do Diana Bar. Sempre, ali ao meio. E não é forçoso apoucar résteas de imagens de homens grandes e fortes, apenas porque já morreram e não podemos crescê-los outra vez.
Levei-os, antes, ao museu. O museu da Póvoa é pequeno mas cheira a maresia: a que haveria de cheirar? Não vi lá o Zé Flores, não admira, já o não vejo há tantos anos.
Leram e viram coisas do Cego do Maio, do Patrão Sérgio, do Patrão Lagoa. Viram o velho hospital. Casas poveiras. Viram o tempo.
Fascinaram-se com as marcas de gente que marca e que se marca: as marcas da morte, as da família, as do casamento. Se os homens tendem a deixar a sua marca em tudo, que espanto pode haver na naturalidade ancestral com que um poveiro as grava na memória e na memória das coisas? Contei-lhes que só quando tinha a idade deles, mais ou menos, me tinham explicado o que queriam dizer aqueles sinais estranhos, pintados nas barracas dos banheiros, na praia: eram os tempos da Maria do Sérgio, do Arlindo Mouco, do Augusto Caneta. Das férias de dois meses inteiros, onde cabia quase tudo.
Leram registos de naufrágios num livrinho velho. Letra antiga, aguçada, tinta preta. Passaram longos minutos a rondar o bote velho, com um rombo no fundo direito do casco, quase à proa. "Cego do Maio", chamava-se o salva-vidas altaneiro, antes do rombo. E ainda chama, pode-se imaginá-lo a galgar este destemido mar como se fosse um clarão de esperança, uma mão grande e nodosa que se estendesse, toda aberta, entregando, possante, a quem a agarrasse, a derradeira misericórdia.
Aprende-se, assim. Aprende-se, ao menos, que um bote velho há-de ter sido novo, há-de ter envelhecido bem, há-de ter sido, um dia, belo e salvador. Vê-se isso, sobretudo, no rombo. Eu mostrei-lhes que é mesmo ali que isso se vê, que é onde se vêem melhor as coisas todas, é nos rombos, é por debaixo da pintura.
E eu revi tudo, também. Revi, mesmo, Eça, que me fascina até na sua morte sofrida. Cuido que há-de ter morrido dum cancro do estômago, queixava-se sempre dele, nas suas cartas. E fez padecer do criminoso cirro alguns dos seus personagens, sempre secundários.
Revi os meus sonhos de menino que, um dia, havia de ter uma traineira, perderia o medo e iria pescar, de noite, o seu sustento e o de uma prole inteira que ficaria em terra, numa espera ansiosa e confiante.
Ao passar por um espelho, nos passos da saída, vi-me lá. E fiquei calado. Ando agora a tratar de cirros, em lugar de bolinar no mar alto de me cumprir. E nem sequer os trato bem, aos cirros: Eça duraria, comigo, careca e aos arrancos, talvez, mais um ano.
Não falei nisto aos rapazes, que vinham ali cheios da beleza das coisas fora do tempo.
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