Prazeres
A Angústias não se chama assim, mas eu também não me chamo besugo. Estamos quites.A Angústias é uma mulher de 58 anos, viva e caprina. Caprina porque saltitou na vida enquanto pôde. Viva porque, por enquanto, ainda sim.
Há quatro anos ficou sem mama, porque teve de ser. Depois ficou sem cabelo, por falta de alternativas. E, depois, foi "à rádio". "Emissão oncológica, antena esperança!". Às vezes brinco com elas assim, e elas comigo. Ficamos parvos. E, depois, ambos convencidos da cura, começou a tomar o comprimido dos cinco anos. Esse, o Tamoxifeno.
E andou bem. Um longo ano.
Há dois anos, o cancro "foi-lhe para os pulmões". Os dois. Com líquidos à mistura. Drenagem, pleurodese (mete-se uma droga, pelo dreno, que bloqueia a pleura e impede novos líquidos que nos abafem) e novamente a alopécia (queda do cabelo) por via do Transtuzumab e do Paclitaxel. São drogas, não liguem.
E ficou bem.
Agora, maldita cor para se ter nos olhos, amareleceu. Bolas à solta no fígado. E respira mal, os pulmões recarregaram-se de líquido e de linhas de morte, a linfangite carcinomatosa. Sim, que a gente pode não saber curar, mas sabe escrever coisas difíceis nos epitáfios.
A filha diz "a Angústias, a nossa Angústias, vai-se desta...". O marido insiste que aquilo é uma infecçãozita, "o nosso doutor vai tratá-la". Como se bate a um animal destes sem nos aleijarmos nele? Coitado do homem, sacana do teimoso, que me julga merda de jeito.
E ela, na cama, a respirar mal com oxigénio a 50%, seis litros por minuto, inchada da cortisona, ainda me disse, ontem e hoje: "Grite lá agora pelo Sporting, ande!!!"
Cabrita benfiquista, parola tão querida, que me vais fugir, puta!
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